sábado, 31 de maio de 2014

À garota folgazã Antônia Amorosa.

"Teco teco teco teco teco na bola de gude, era o meu viver, quando criança no meio da garotada, com a sacola de lado, só jogava pra valer." 
Esta música tão bem cantada pela Gal Costa, pra mim, simboliza a garota e adolescente Amorosa. E por esta imagem de liberdade, de aparente não seriedade com as pesadas coisas da vida, é que quase cometi uma injustiça, de cujo ato, ainda hoje me penitencio, porque me serviu de enorme lição de vida.
Em 1981, o radialista e hoje deputado estadual Gilmar Carvalho tinha um "programa romântico", aos domingos, à noite, na então novidade na radiofonia sergipana, a Rádio Princesa da Serra; escola de tantos, inclusive deste reles escriba, aqui. Eis que Gilmar é contratado pela então Rádio Difusora de Sergipe, hoje Aperipê, e o horário ficou vago. O programa, conduzido por um cara que nunca sequer tinha namorado na vida até então (uns 18 anos de idade, tinha o Gilmar) era um sucesso absoluto. Crônicas, cartas de ouvintes, nenhuma interação direta, mas sempre abrindo canais para o externar dos sentimentos da garotada, naturalmente toda feminina. Seria de grande perda para a emissora a sua não continuidade.
Começado no rádio com um programa meio atípico para a região, inspirado no famoso Cavern Club, de Big Boy, da ex Rádio Mundial do Rio de Janeiro, eu havia evoluído pra discotecário e uma espécie de faz tudo dentro da emissora, no que o tempo me permitia. Aí, Juarez Ferreira de Gois, meu então chefe, no meu então emprego de carteiro dos Correis e Telégrafos, e superintendente da emissora, fez-me a proposta: manter o programa criado por Gilmar, porém com outra denominação, apesar de manutenção do gênero. Topei! Cheio de ideias na cabeça, e sabedor das limitações de Juarez como locutor, justo pra fazer frente ao então jovem e inexperiente, mas já então excelente comunicador, Gilmar Carvalho, resolvi criar uma série de atalhos que reduzisse a distância, e mantivesse a qualidade do programa, com ganhos, até, se possível. Um dos quadros criados foi uma mini novela, cujo tema, claro, folhetinescos casos de amor com tudo que tem direito: ciúmes, traições e tragédias, etc.. Bem a ideia, eu tive. A história e demais que vieram a seguir, eu as fiz; mas, e o principal? O material humano para dar forma a essas ideias? A sonoplastia eu havia preparado, e contava com excelentes técnicos de mesa de som para por em andamento, inclusive o jovem impetuoso e mui talentoso, Osvaldo Santos. Pros atores masculinos, tinha material. Não era dos melhores, mas quebravam muito bem o galho; mas faltava-me o principal: a voz feminina. Ardemos a cabeça, eu e Juarez, em busca da voluntária (não vencia soldo, claro), entre as meninas que costumavam frequentar a emissora. Nada. Ou não se ajeitavam com o texto, ou simplesmente morriam de vergonha em pelo menos tentar.
Domingo da estreia do programa em nova roupagem. A emissora não tinha estúdio de gravações; por isso, estas eram feitas nos espaços de tempo em que o sinal era passado direto para o transmissor, nos horários reservados à Agencia Nacional, seja da Voz do Brasil e sequente Projeto Minerva, durante a semana, de segunda a sexta; seja durante o Projeto Minerva do Domingo, e o sequente Nosso Domingo Musical, tudo programas do MEC, com a finalidade de difundir a cultura. Hora do vamos ver, e nada da ansiada voz feminina que faria a interpretação da única mulher envolvida no drama para aquele dia, que não era qualquer um: era o dia da estreia! Decidimos desistir do projeto, mas, enquanto tomávamos a decisão, entra Osvaldo Santos com uma última ideia: “E se chamarmos Amorosa? Amorosa é “boca quente”; ela sabe fazer!” Amorosa! Nome, no mínimo artístico; já que não conhecia e nem conheço até hoje, ninguém com este nome. Em não a conhecia, disse a Osvaldo que em vão tentou-me convencer de que a conhecia, sim, dando vários indicativos que me foram em vão. Nem também a conhecia Juarez Ferreira de Gois, nem João Batista Santana, jornalista e diretor artístico da emissora. Bem, mas, quando se está perdido, qualquer caminho nos leva pra casa, dizem. Liberamos o Osvaldo pra ir tentar ver se “a tal Amorosa” topava. Menos de dez minutos estava o Osvaldo de volta, trazendo Amorosa. A garota, eu conhecia sim; estava acostumado a vê-la próximo de sua residência, na Praça da Bandeira, já então rebatizada de Avenida Airton Teles, e em quase em frente ao antigo Hospital Regional Dr. Rodrigues Dória, hoje um terreno baldio onde funciona a Associação dos Estudantes Universitários de Itabaiana. O local, além de todos esses quesitos, nesta época ainda abrigava a única agência de ônibus da Cidade, já que não tínhamos Estação Rodoviária, e era uma espécie de canal de entrada, de afunilamento, para a numerosa estudantada do Colégio Estadual Murilo Braga. Mas, Amorosa não me causou lá grande impressão, confesso. A imagem que dela tinha, era justo a imagem de “garota folgazã, onde em toa parte que passava encontrava um fã”, que “quando havia festas no lugar era a primeira ser chamada para ir cantar” e fugia completamente ao modelito por mim acreditado, como certo para aquele papel. Mas sempre tive pavor de machucar alguém; e declinar naquele momento, não devia por dois motivos: era mais uma tentativa, talvez a última; e com certeza eu iria machucar profundamente aquela criatura que, apenas me parecia diferente do que eu precisa parra executar aquela tarefa; mas era uma pessoa humana! Logo, merecedora de todo o meu respeito. Meio sem graça, completamente incrédulo, passei-lhe as folhas datilografadas com o diálogo, observadas as suas possíveis participações e esperei. Menos de cinco minutos depois, e eis que chega Amorosa: “Vamos gravar?” Bem, o tempo urgia; só tínhamos no máximo mais meia hora... era pegar ou largar. E lá fomos pro estúdio. Ela e Juarez inicialmente, pro aquário; e eu e o Osvaldo na técnica. Osvaldo abre o microfone, Juarez começa bem a sua interpretação e... o que se seguiu, me fez cair o queixo. E me serviu e lição pro resto da vida. Sem errar uma letra; numa interpretação digna de grandes atores nacionais, ela desfiou sua interpretação num realismo que, na terceira semana, levou a polícia à porta da emissora a perguntar onde “havia sido o crime que a rádio estava falando”, tal o nível de realismo que conseguimos imprimir àquele pequeno pedaço de arte. E, óbvio, Amorosa foi o esteio, a estrela única daquele trabalho. 
Uns dois meses depois, a emissora recontratou Gilmar Carvalho, que não reeditou o programa que lhe foi deixado por Juarez. Quanto a Amorosa, logo a seguir, mais uma felicidade de um encontro. Desta vez, com o casal, o saudoso Uéliton Mendes e sua esposa e hoje viúva, Dirce Mendes, que então montavam o grupo musical Asa Branca, que projetou Amorosa pro estado e além-fronteiras. Ontem, na sua fala sobre o lutador e grande artista Zé Bezerra, patrono de sua cadeira, a de número 18, na Academia Itabaianense de Letras, tudo isso me passou como um filme na memória. E reafirmou-me as lições de vida recebidas.
Parabéns, minha amiga, por você ser o que e quem é.