terça-feira, 28 de abril de 2020

DO PRIMEIRO PICOLÉ A GENTE NUNCA ESQUECE

O dia amanheceu radiante, especialmente para mim. Era um sábado, dia de feira livre na cidade e meu pai, desde a tardinha da sexta-feira que já tinha avisado para minha mãe: Amanhã eu vou chegar terra a aquelas carreiras de feijão do aceiro de cima da malhada e você vai fazer a feira.
Ir pra feira, para minha jovem mãe significava abastecer a dispensa semanalmente; mas também andar pelos armarinhos em busca de agulhas, carrinhos de linhas e cachetes, se abastecer de bicos e outros acessórios de costura, e, ter a chance de ir no pegue-pague, novinho em folha, com menos de três anos em funcionamento e com um sortimento ultra diversificado em um só lugar, e o mais importante: com total liberdade de escolha; diferente dos armazéns onde se tinha que tudo pedir ao balconista. De fato, quase ninguém o chamava assim de forma tão impessoal, fria. Já era G. Barbosa e pronto.
E, o ir para feira da minha mãe significava uma festa para mim. Os manuais de comportamento social de até a chegada da televisão dizia que toda mulher casada só deve sair acompanhada. Seja do marido, ou pelo menos um filho. Eu era o único filho.
Então chegou o tão esperado sábado.
A minha mãe se aprontou e a mim. Coisa simples: uma alpercatinha afivelada; um calça curta – bermuda é estrangeirismo que também veio com a TV – uma camisa simples e meu indefectível chapéu de palha. Essa herança antiga reza que todo homem, adulto ou menino tem que usar chapéu. E o de palha, além de ser produção regional e inúmeras vezes mais accessível que o de baeta; usado pelos adultos, e somente em ocasiões especiais.
Pegamos a estrada. Passamos pela casa de D. Conceição e Seu Oziel; descemos a pequena ladeira, a parte mais acentuadamente íngreme junto ao abandonado sítio de Cantídeo e aí tivemos que cortar caminho pro dentro do sítio de Arnaldo porque o restante do acesso à pista onde tomaríamos o pau-de-arara estava intransitável devido aos atoleiros. Atravessamos o riacho Mundesinho, naturalmente saindo por trás da olaria de Seu Toinho Higino, à beira do dito riachinho. E então nos encaminhamos em direção à pista, porém, não chegamos a alcançá-la: D. Maria, esposa do Seu Toínho também ia à feira; só que iria no “pavão”; e nos ofereceu carona.
Nunca soube porque o apelido; deduzo que inspirado no romance em cordel, intitulado Pavão Misterioso, muito popular na época; mas pavão era como chamavam um velhíssimo caminhão Ford, à época já conhecido como caminhonete, e que era faz-tudo em matéria de transporte da olaria, quando se tratava de cargas pra fora ou de fora, como pequenas entregas de telhas, tijolos e ladrilhos, ou de lenha para abastecer os fornos. E, é claro, servir de transporte entre o Rio das Pedras, locação da narrativa até agora, e a cidade, e suas feiras, especialmente as dos sábados.
Bem, a minha mãe aceitou a carona e subimos no “pavão”: eu na carroceria de metal com outra pessoa que me era desconhecida e alguns objetos para a “casa da rua” da D. Maria; e ela e a minha mãe na cabine, além do motorista, obviamente. E disparamos pela rodagem a afora. Tempos depois eu tive a curiosidade de olhar: o rústico mostrador do painel só marcava até 60 quilômetros horários.
Chegamos na cidade e a minha mãe agradecida despediu-se na “casa da rua” da família que se localizava no hoje glamuroso trecho da Ivo Carvalho, de frente para a quadra onde se encontra a Associação Atlética de Itabaiana, onde D. Maria ficou, e seguimos em direitura à feira, nosso objetivo.
Minha mãe fez sua indispensável oração na matriz de Santo Antônio e Almas, cumpriu suas obrigações de católica caridosa, distribuindo esmolas a pobres aleijados, cegos e velhos abandonados, e em seguida, meteu-se na feira comigo a tiracolo a pechinchar e negociar o melhor pelo menor que podia comprar... enfim: fez a feira.
Terminadas as tarefas, pusemo-nos em direção ao “carro de feira”, como era conhecido entre nós o caminhão pau-de-arara, que invariavelmente estacionava o mais próximo possível da feira, do lado oeste da comprida Praça João Pessoa.
Naqueles tempos, além do consumismo inexistir, seja por educação neste sentido, seja por indisponibilidade da enormidade de artigos hoje existente, e principalmente por carência financeira geral, crianças, sempre ávidas a novidades eram contidas por sua severas mães e geralmente só ousavam pedir algo quando muito natural, exemplo de um copo de água pra matar a sede, ou, outra coisa só com muito cuidado em casa; no mínimo, escondido do público. O dinheiro era curtíssimo e, em geral não se ofertava aos filhos aquilo que se julgava desnecessário, seja devido a não prioridade ou simples falta de hábito. Dessa forma, inexistia dia de feira que o meu pai esquecesse de cocadas, bolachinhas de ovos, quebra-queixo, mariolas... “essas coisas do estrangeiro”, não. Eu adorava, especialmente os confeitos – amendoim com açúcar semi-caramelizado – as mariolas e goiabadas, claro! Mas, nas raríssimas vezes que acompanhava minha mãe à feira morria de vontade de experimentar os “estrangeirismos” vistos cada vez mais nela; cada vez mais apelativos. Especialmente os picolés. Curiosidade total.
Mas ninguém me oferecia um picolé.
Chegamos ao caminhão. Uma escadinha posta do direito facilitava o acesso aos bancos dispostos na carroceria onde minha mãe sentaria e me poria no colo. Se ocupasse um lugar do banco pagaria passagem inteira, mas no colo seria só meia passagem, e depois dos seis. O que houve de menino de cinco anos que passou três ou quatro sem aniversariar não foi pouco. Nessa época eu tinha cinco e meio, mais ou menos.
Mamãe me pôs em cima, e só quando certificou-se da minha segurança subiu a escada de três ou quatro degraus, sentando-se próximo ao meio: “menos arriscado”. Tão logo terminou de sentar-se, eis que também sobe a escada D. Maria. O pavão tinha ido fazer algum serviço; e ela, pra não muito se demorar na cidade resolveu retornar no “caminhão de linha”, como a eles geralmente se referiam quem tinha algum veículo.
As conversas de praxe, o menino da moringa a vender água, como sempre garantindo que era boa e fria e nós três a tomamos. Diante do que veio a seguir, esqueci completamente quem pagou pelos três copos d’água: outro menino logo aparece oferecendo picolés. Minha mãe declinou da oferta direta, do vendedor; e da que veio a seguir por parte de D. Maria. E eu? Quer, Zé, perguntou-me ela, incisiva! Encolhi-me, pego de surpresa, com toda a vontade do mundo, mas, sem a mínima autoridade em passar por cima das ordens maternas. O coração disparou! Muito além das glândulas salivares. Uma revolução! À repetição da pergunta, minha mãe, seríssima resolveu o impasse: “Se quer, diga, rapaz!”.
Alívio geral, mas, a seguir outro complicador, menor, mas não menos importante. “Quer de quê, Zé?” E eu lá sabia de sabores, variedades... salvou-me a lembrança recente da lista de produtos dada pelo moleque ao ofertar: “de goiaba”. Só então percebi que a D. Maria já levava o seu à boca, justo de goiaba, no qual deu mordida inspirando-me a fazer o mesmo.
Eu nunca tinha visto gelo na vida. Nem na padaria de Seu Valdomiro, depois de Seu Zé Antônio tinha sequer tomado o tradicional suco de maracujá gelado no refrigerador a gás – de fato querosene – que lá existia. Para mim, o picolé seria como um pedaço de dulcíssima goiabada gelada, como os sucos de maracujá de Seu Valdomiro.
De posse do meu presente, num perfeito e sacro ritual de iniciação, aprumei o picolé na boca e, como D. Maria dei uma mordida com vontade.
Perdi momentaneamente os dentes. Os olhos se encheram de lágrimas. A vergonha pelo vexame passado me fez entrar em estado de transe. Ainda bem que ela não percebeu ou se fez de desapercebida com pena da minha tabaroíce. Respirei fundo; deixei os dentes “voltarem à boca” e a língua desengrossar... e terminei de saborear o primeiro picolé da minha vida.
Pequenos pedaços de memória que é uma vida. Para toda a vida.
D. Maria de Seu Toínho Higino nos deixou hoje depois de uma família muito bem criada e centenas de amigos feitos ao longo dos 86 anos que conosco neste plano passou.
Que Deus a abençoe! O céu ganha mais uma estrela.