quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A LEI DO MAIS SIMPLES

O saudoso José era um desses “cidadãos comuns como esses que se vê nas ruas”, como cantado pelo também saudoso Belchior. Lutador, trabalhou de sol a sol para dar dignidade à família, no que desse: de representante comercial e gari, tendo, ao fim da vida sendo meu colega de trabalho. E era espírita; quase fundamentalista.
O meu amigo Antônio é advogado, com larga experiência de vida; também espírita, porém menos inflamado. Diria que bem racional, como lhe é próprio, além de brincalhão, gozador habitual. Resultado: sempre tirou uma casquinha do José, só para vê-lo inflamar; ir do zero a cem em milissegundos.
No começo dos anos 90, não me lembro qual o ano, um assalto a uma agência do Banco do Brasil deixou, salvo lapso de memória, dois mortos entre os assaltantes, provavelmente amadores, já em processo de rendição. Isso levantou grande discussão o país, ainda traumatizado com o militarismo da Ditadura, recém encerrada, se a polícia agiu certo ou não, matando depois dos criminosos controlados.
Meu amigo José, devido aos frequentes atritos com o gozador amigo Antônio, sempre o olhou com desconfiança; essa acentuada pelo fato de o Antônio ser advogado; logo, no entender do José, um “soltador de bandidos”.
Fazíamos parte de grupo que habitualmente nos reuníamos numa lanchonete tradicional do centro da cidade, quase todas as tardinhas, e por isso apelidada de “o senadinho”. Advogados, professores, médicos, intelectuais em geral, jornalistas e radialistas, e os indefectíveis assessores político-partidários, os populares puxa sacos completavam aquela ágora.
Décadas antes, José havia sido funcionário municipal quando, na administração do senhor Teófilo, uma figura irretocável, mas que naturalmente abrigava em sua administração personagens geradores de intrigas e vendetas; fora exonerado e nem a justiça o realocou – eram tempos do AI-5.
Voltando à discussão se ladrão deveria morrer ou não entre o José e o Antônio sob olhares e ouvidos atentos, e já se formando as naturais torcidas, contra e a favor à aquele ou este, eis que o Antônio prepara o cheque-mate:
- Então, José, ladrão tem que morrer?
E José bem enérgico, já sentindo a torcida a seu favor:
-Sim! Ladrão tem que morrer. Eu sou espírita; mas, tenho que ser justo: ladrão tem que morrer!
E Antônio, de novo:
- José, você tem certeza que ladrão tem que morrer?
E José, mais inflamado, quase gritando:
- Tem que morrer, sim. Você defende porque você é advogado.
E aí, Antônio dá o cheque mate:
- José, ladrão tem que morrer? Inclusive o acusado de roubar cem cabos de vassouras do almoxarifado da Prefeitura?
Gaguejando mais do que o habitual, José levantou-se e saiu apressado, sentindo a pancada. Ele, um cidadão visceralmente honesto, falecido há pouco, cerca de ano, sem a mais leve mácula em seu comportamento fora posto pra fora do emprego por um aleive que inventaram de que havia roubado cem cabos – não as cem vassouras completas, mas só os cem cabos -  e a justiça não o condenou “por falta de provas”, o que significa um recuperação moral duvidosa; mas, pior: ainda manteve a sua exoneração, puramente político-partidária.
Lendo o artigo infra, do causídico Sérgio Rosethel, replicado pelo amigo, promotor aposentado, Roosevelt Batista de Carvalho me veio à lembrança esse episódio real, onde troquei os nomes por pseudônimos.




O Artigo:

Qual a minha verdade?

BRASILEIROS SÃO ESTIMULADOS A REPUDIAR DECISÕES JUDICIAIS QUE NÃO COMPREENDEM


Há exatos 20 anos, David Dunning e Justin Kruger , dois professores da renomada Universidade Cornell, nos EUA, publicaram no Journal of Personality and Social Psychology as conclusões de pesquisa que denominaram Dunning-Kruger effect, pela qual demonstraram que indivíduos que têm pouquíssimo conhecimento sobre determinado assunto tendem a acreditar saber mais que muitos muito mais bem preparados, sendo essa noção equivocada fruto exatamente de sua ignorância e consequente incapacidade de reconhecer sua própria incompetência. Para comprovar sua tese, a partir de uma série de experiências Dunning e Kruger desenvolveram um gráfico em que fica claro que, quanto mais ignorante sobre o tema, maior é a assertividade do indivíduo e a convicção quanto à procedência de suas conclusões. Vale dizer, quanto menos o cidadão sabe sobre o assunto, mais certeza tem de que suas opiniões são corretas e mais à vontade se sente para manifestá-las.
A partir do momento em que vai adquirindo real compreensão sobre o tema, suas certezas e convicções vão diminuindo gradativamente, até que, a partir de determinado momento, voltam a aumentar, na medida em que o cidadão vai se tornando um expert no assunto. O mais surpreendente, no entanto, é que o estudo revela que, mesmo após estar absolutamente preparado e instruído, o cidadão jamais atinge o nível de certeza que tinha quando seu conhecimento era mínimo.
Fossem brasileiros, os autores do referido estudo poderiam constatar a procedência de suas conclusões diariamente ao ler e ouvir os contundentes comentários que circulam em todo o País – em rádios, jornais e redes sociais – sobre decisões judiciais, especialmente as proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo casos criminais de grande repercussão.
Temas legais de altíssima complexidade são analisados com incrível celeridade, e sem necessidade de muita reflexão, por indivíduos que jamais frequentaram uma Faculdade de Direito, jamais compulsaram a Constituição federal, desconhecem completamente a jurisprudência de nossos tribunais, os princípios que regem o direito material e o direito processual, e não têm absolutamente nenhuma experiência jurídica.
Com isso, milhões de brasileiros são estimulados não apenas a repudiar veementemente decisões judiciais que, de fato, não compreendem, como a apoiar cegamente projetos de lei de que desconhecem o conteúdo e cujos efeitos sociais são incapazes de vislumbrar.
É evidente que todo o cidadão tem o direito de se manifestar sobre temas como a prisão após o julgamento em segunda instância e as vantagens e desvantagens de uma lei que compacta o abuso de autoridade, especialmente por se tratar de questões do interesse de toda a sociedade. O problema surge quando tais manifestações, decorrentes do desconhecimento, da desinformação, e principalmente, da manipulação por grupos empenhados em impor seus valores e convicções, assim como seus interesses e projetos pessoais, passam a ditar o comportamento de membros do Poder Judiciário e do próprio legislador.
Com efeito – e o confirmam Felipe Recondo e Luiz Weber em Os Onze: O STF, seus Bastidores e suas Crises -, a repercussão de suas decisões na opinião pública vem sendo tema de grande preocupação entre os Ministros da mais alta Corte do País.
O que dizer, então, dos magistrados de primeiro grau, especialmente os que atuam em casos rumorosos envolvendo crimes de corrupção?
Como esperar imparcialidade de um Juiz de Direito que será, sem sombra de dúvida, julgado ele mesmo, em razão de sua atuação, por uma sociedade para quem o magistrado que condena e manda prender é tido como “linha-dura” e merecedor de encômios e aplausos, enquanto o magistrado que absolve e manda soltar é repudiado?
Outro triste exemplo dessa preocupante situação é o projeto anticrime apresentado há alguns meses pelo dr. Sérgio Moro, sem prévio debate com especialistas em segurança pública e operadores do Direito, especialmente entidades representativas da advocacia, mas com apoio em ruidosa campanha publicitária voltada para convencer o público leigo de que as alterações legislativas propostas constituiriam uma resposta eficaz do governo ao avanço da criminalidade, que tanto aflige a população brasileira. O raciocínio que se busca incitar é bastante simples: cidadãos de bem são contra o crime. O projeto apresentado é contra o crime. Logo, não resta opção aos cidadãos de bem senão apoiá-lo, mesmo sem conhecer seu conteúdo, até porque sobre os que ousam criticá-lo ou a ele se opor (apontando incongruências e violações a direitos e garantias fundamentais) recai a pecha de serem a favor do crime.
Dentre outras coisas diz a Carta Magna, em seu preâmbulo, que o Brasil é um Estado Democrático, destinado a assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Pois, para que assim o seja de fato é imprescindível que, antes de se manifestar sobre questões como as hipóteses de cabimento dos embargos infringentes, a ampliação do rol de causas excludentes de ilicitude e o efeito suspensivo do recurso em sentido estrito oponível contra a sentença de pronúncia, a sociedade brasileira, cansada da corrupção e sequiosa por um País melhor, compreenda que tais temas demandam intensa e profunda reflexão e que a melhor justiça não se faz apoiando cegamente magistrados arbitrários, decisões judiciais contrárias à lei ou propostas de alteração legislativa que visem simplesmente a cercear o direito de defesa dos acusados.
SÉRGIO ROSENTHAL – Advogado Criminalista. Foi Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo – AASP.