sexta-feira, 30 de setembro de 2022

UM PAÍS. O MEU PAÍS.

Sempre adorei histórias, e o “romance” preferido na zona rural do Nordeste, cheio de analfabetos, trabalhando de sol a sol, na luta pelo básico da sobrevivência era o “romance” de cordel, desconhecido então por nós como “cordel”; simplesmente romance.
Foi numa dessas insistidas com minha mãe em reler o cordel A Princesa Maricruz e o Cavaleiro do Ar(*), talvez pela centésima vez, e diante de sua negação tipo, “agora, não!”, que veio a deixa que no fundo ela estava querendo. Chorando, desolado, reclamei: “também ninguém me ensina a ler!”
Dez minutos depois e eu estava com um ABC maiúsculo rabiscado num papel de bolsa de açúcar (tipo kraft, do mais fino); que aprendi de imediato, a ponto de passar um vexame dois dias a seguir, quando fui pessoalmente entregar uma declaração de amor rabiscada, quase que hieroglifamente à minha primeira paixão, de sete anos de idade, um ano e pouco mais velha que eu, na frente da irmandade toda – cinco dos seis irmãos - que, óbvio, quis logo saber o que era aquilo. E ficou a me gozar.
Como resultado, um mês depois, folheto básico do ABC, um caderno de pauta dupla, para treinar a caligrafia (de início eu não sabia pra que tanta linha) e uma cartilha, lápis e borracha e eu partia numa tarde ensolarada para escola de “Carminha de Bastião”, à beira da rodagem, hoje pista asfaltada, BR-235, fazendo esquina com a atual rua próxima aos pardais, logo depois deles, lado direito, sentido Aracaju, no povoado Rio das Pedras.
A humilde escolinha não tinha a menor estrutura, mas, dois anos depois as coisas começaram a mudar. Evoluiu para escola do Município de Itabaiana, o que aliviou o bolso da mínima mensalidade paga, mas que fazia grande diferença no orçamento de minha casa. A professora foi contratada pela Prefeitura, vieram toscas, porém antes inexistentes carteiras coletivas (as vezes até seis crianças espremidas nelas), em verdade bancos; e um quadro verde. Verde, viu? Moderno. Que só a escola de D. Rita (Rio das Pedras também conhecido como Três Bodegas) e as escolas da cidade tinham. E até um luxuosíssimo filtro de barro no segundo ano do Primário. Teve gente que quase pipocou de tanto beber água filtrada, logo nos primeiros dias. Também no segundo ano do Primário, 1970, veio a preciosa merenda.
Mas quem concluía o quarto ano do Primário e não tinha condições – quase ninguém tinha – de residir na cidade ou pagar passagem cara de ônibus. E parava de estudar. No meu tempo somente três estudantes terminaram o Primário e tiveram imediatas condições de continuar os estudos no ano seguinte no Colégio Estadual Murilo Braga, onde, mesmo pessoas da cidade, a depender do nível econômico tinha certa dificuldade com o seu “vestibular”: o Admissão ao Ginásio, feito para se aprovado, iniciar o Ginasial, hoje as séries de quinta à nona.
Hoje, 50 anos depois, uma procissão de ônibus percorre todos os povoados do município a captar e distribuir alunos, quer nas escolas urbanas; quer nas unidades rurais, parte substancial delas que ensinam também os primeiros anos do Ginasial do meu tempo.
Ecos da política educacional nacional nascida com Anísio Teixeira, Murilo Braga e tantos outros


Em 1976, uma infecção no dedo médio direito levou a minha mãe à perda parcial da estrutura digital na última falange do citado dedo. E por quê? Ora, não existiam postos médicos na zona rural; e no município, além da Fundação SESP e do resistente Hospital Regional Dr. Rodrigues Dória, mudado de local em 1980 e com denominação atual de Dr Pedro Garcia Moreno Filho, nada mais tinha. A demora na busca por uma unidade de saúde; somada às carências do Hospital, onde os velhos enfermeiros, Seu Josué Menezes e D. Tereza, por vezes se valiam da solidariedade do SESP e até da Maternidade São José para poderem ter material para fazer um simples curativo, e os efeitos da infecção a marcaram para sempre.
O Rodrigues Dórea, uma organização não governamental desde seu nascimento, em 1936, sempre foi uma gambiarra; um ato de empurrar com a barriga; de pegar na sorte.
Sem robusta clientela financeiramente capaz – e, ao contrário, uma imensidão de carentes; sempre necessitando da caridade, eternamente deficitária; dependendo da abnegação de seu corpo funcional, sempre mal remunerado e tendo que usar da criatividade para resolver problemas rotineiros, o Rodrigues Dória nasceu, viveu e morreu na indigência.
Mas, do Vaza-Barris ao Sertão do São Francisco, o Rodrigues Dória foi durante décadas a única referência. Até mesmo porque não era muito diferente no restante do estado, em centros então bem mais estruturados como Lagarto, Capela, e especialmente nas ainda ricas Propriá, Laranjeiras e Estância. E na capital, também.
Corte rápido, há um mês, necessitei de atendimento de saúde de emergência e recorri ao novo Hospital Regional Dr. Pedro Garcia Moreno Filho. Ainda apresenta gargalos sérios: estrutura acanhada para o atendimento dos seus 300 mil possíveis clientes – populações de Itabaiana, 16 municípios da grande Itabaiana, antigo município, e mais três ou quatro fronteiriços da Bahia – fazem do Hospital em algumas horas do dia algo bastante estressante, com macas pelos corredores; gente tomando soro na sala de espera, enfim: seria necessário uma grande ampliação do espaço para mantê-lo com o status de hospital de capital regional, como de fato é.
Passei quase doze horas no atendimento, entre exames, aferimentos contínuos de pressão sanguínea, controle glicêmico, etc.. Saí levando um monte de recomendações, chapas de raios-X, e resultado de uma tomografia. Acabei decidindo usar o convênio de saúde na capital por possibilidade e necessidade, já antevendo bronca maior. Porém posso dizer que meu atendimento foi nota dez.
Hoje, 30 de setembro, pela manhã, como repetidamente tem feito há aproximadamente três meses, uma equipe da Secretaria Municipal de Saúde encostou o carro numa residência próxima a mim. Tem vindo cuidar de um vizinho acamado, que nestes últimos três meses necessitou ir ao Hospital, mas que nos momentos amenos tem voltado para casa, ficando aos cuidados de familiares, todavia sempre tendo o apoio da equipe de enfermagem do Município.
Isso tudo é produto do combatido e tão útil SUS-Sistema Único de Saúde. Antes dele era só penúria. E amputações.
Isso é produto direto da Constituição da República Federativa do Brasil, que criou o SUS.
Que o país ainda está por construir, essa é a verdade. Mas também é verdade que a engenhosidade administrativa brasileira em resolver gargalos que são seculares do país vem sendo possível graças a paciência e insistência em construir suas instituições, a começar da sua Carta Magna, de 1988.

 

P.S.:

(*) Livreto de poesia de Severino Borges da Silva, baseada na literatura clássica russa