sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Reprise da história

Publicado no extinto Portal Itabaiana (portalitabaiana.com.br) em 08 de agosto de 2003.


(continuação)
O entra e sai na Prefeitura, como também na casa dos Deputados, estrategicamente situada num canto da Praça Fausto Cardoso - a Praça da Matriz, onde todos as famílias de bem e de bens devem residir - faz o contraponto com as arrumações no Ginásio Estadual Murilo Braga para aquela que será a passeata da desgraça.
Sem o saber, dezenas de alunos, professores e dirigentes participarão da farsa cujos resultados parecem premeditados pelo que ocorrerá nas próximas horas, uma passeata, cuja será "garantida" pela Polícia Militar do Estado de Sergipe. Na noite anterior, reuniões de organização do ato foram realizadas e a mesma, na sua aparência é um inocente e democrático ato de protesto contra possíveis resistências do Chefe Político de então a respeito da chegada do sistema de água encanada, que irá retirar Itabaiana da era primitiva.
A passeata toma o rumo da praça central da cidade sob os gritos de "queremos água", uma forma de obrigar o "Chefão" a dobrar-se diante das evidentes opiniões modernizantes. Provocante como todos os atos do gênero, ela está prevista para passar na frente da casa do mesmo. A polícia segue lhe dando "garantias".

A Prefeitura está lotada de gente, inclusive de reputação pouco aconselhável; é assim que funciona o coronelismo. De todas as partes envolvidas. Metido lá dentro, o jovem deputado Antonio de Oliveira Mendonça, que como seu pai, não atendeu aos apelos de amigos cismados com o clima instalado na cidade para que se ausentassem enquanto ocorresse a manifestação.
A passeata avança. Ao dobrar a esquina da Rua 13 de Maio com a Travessa Manoel Leite Sampaio, oitão da Prefeitura, o deputado Antonio de Oliveira Mendonça percebe a confirmação da armação política: o jipe que transporta o sistema de auto falante, condutor da passeata é mesmo de um desafeto dissimulado seu e de seu pai e então toma o caminho da porta.

Não há santos nessa parada, salvo os alunos e mestres do Murilo que apenas participam de uma passeata cidadã. Diz-se ou suspeita-se, lá dentro da Prefeitura, homens armados até os dentes espreitam para dissipar a garotada ao som de balas. Da calçada de sua própria casa, a observar, Euclides espera a passagem. Antonio sai de dentro do prédio da Prefeitura. Toma uma câmera fotográfica com que irá tirar a prova de que estão sendo traídos pelo colega de partido e... De repente um zumbido. Alguém atirou num policial. A garotada bate em debandada tendo gente que irá se esconder até debaixo de camas estranhas. A resposta brutal é uma... duas... três rajadas de metralhadoras no jovem deputado que tomba ao chão sem o maxilar inferior, comida por uma das rajadas. Em desespero, camisa aberta, seu pai que a cinqüenta metros presenciou a cena corre ao seu encontro e recebe uma quota de balas, tão forte e letal quanto a que fez tombar seu filho. Encerra-se aqui um capítulo da história de Itabaiana, cujo terá desdobramentos posteriores e ainda hoje, quarenta anos depois, é uma chaga crônica nesta própria história.
Quem é Euclides?
Euclides Paes Mendonça é um dos três filhos de uma modesta família de agricultores da Serra do Machado, ex-Município de Itabaiana, que conseguiram brilhar na vida social, econômica e política do Estado de Sergipe. No caso dos outros dois, Mamede Paes Mendonça e Pedro Paes Mendonça, em não tendo recebido a desgraça que acolheu Euclides se tornaram estrelas no comércio nacional com a fundação de duas grandes redes de supermercados - o Bom Preço e o Paes Mendonça - este último tendo seu nome extinto pelos novos donos assim que trocou de mãos.
Os três começaram no ramo comercial estabelecido, quando da instalação de uma padaria no Saco do Ribeiro, nome depois trocado para Ribeirópolis. Dissensões e malogros no empreendimento - dois bicudos não se beijam, muito menos três - desfez a sociedade vindo Euclides para Itabaiana por cuja cidade parece que tinha fixação; uma verdadeira adoração. Mamede foi aventurar-se em Salvador, Capital do Estado da Bahia e Pedro retornou à Serra do Machado ali estabelecendo um pequeno comércio. Este depois se mudaria para Aracaju, lá se estabelecendo e entrando na política o que o levaria a se distanciar do irmão Euclides, já que a área de base política disputada pelos dois passou a se confundir. Euclides resolveu refundar Itabaiana.

A Vila do fim de mundo.
O pequeno distrito, com uma praça deserta e mais duas ruas cheias de casas de taipa, porém rebocadas era de uma pobreza enorme.
Sua elevação à condição de Vila trinta anos depois nada lhe muda desde que a povoação começou a se formar em trono da nova Igreja de Santo e Almas de Itabaiana Grande, no início do século XVII. Assim permanecerá até a década de 30 do século próximo passado - o século XX.
Os ricaços da cidade possuíam um sobrado construído em paredes de taipa, com piso superior em madeira, sacadas da mesma forma, às vezes constituindo abuso pelo avançar sobre a via pública. As paredes destes sobrados costumavam ser rebocadas e pintadas com toá, um pigmento natural e freqüente na região, depois com o aparecimento da cal, esta substituiu a pintura.
Item vital era cisterna construída para guardar água das chuvas, mas que pela falta de um material como o cimento portland, cuja invenção demoraria chegar por aqui, somente na década de trinta em diante é que começam a serem construídas com freqüência e consistência. Era mais vantagem morar na zona rural, especialmente na parte do Município menos atingida pelas secas do que na vila. Aliás, segundo Vladimir Souza Carvalho, in A República Velha em Itabaiana, ed. Fundação Oviedo Teixeira - 2000, a elevação à condição de cidade de Itabaiana em 28 de agosto de 1888 se deveu mais aos interesses do Deputado Guilhermino Bezerra em promover o salário de dois irmãos professores do que à necessidade ou reclamos de seus poucos habitantes. Foi fugindo desta condição miserável que muitas famílias daqui migraram, dentre elas a da historiadora Maria Thétis Nunes em 1933.

Uma jornada de glória e tragédia.
Entre o Estado Novo, 1937, e a Constituinte de 1946, a política local viveu uma balbúrdia com troca de prefeitos biônicos o tempo inteiro, deles tendo permanecido no cargo por menos de seis meses. O progresso, contudo, patinava. Nesta época Euclides já se encontrava em Itabaiana com um pequeno armazém e depois uma padaria na esquina da Rua Marechal Deodoro com Rua Coronel Sebrão (Beco Novo). Deste empreendimento se desfaria depois repassando-o a um fiel escudeiro desde os tempos de Ribeirópolis, o então futuro Vereador Manoel Clemente da Rocha - Manezinho Quelemente.
Diz-se - não temos a comprovação - teria concorrido às eleições de 1947 contra Jazon Correia. Em 1950, entretanto, contra a máquina do Estado, nas mãos dos adversários e completamente viciada se elege Prefeito pela UDN - o moderno partido de direita com cujo se afina. A UDN - União Democrática Nacional - em geral é um partido progressista, ao invés do PSD, todo recheado de coronéis decadentes, política e economicamente, donos da máquina administrativa do Estado, mas sem o dinheiro necessário para manter-se de pé por muito tempo. Em Sergipe a UDN não chega a ser esses primores de modernidade, haja vista o tipo de homens que a compõem, mas tem uma visão, oportunista ou não, modernizante.
Depois da Constituinte de 1946, segundo várias opiniões de peso, a melhor do país até os dias atuais, a modernização toma curso e os resultados dos investimentos em infraestrutura se tornam cada vez mais visível. CHESF - energia; DNOCS, água e combate às secas; e a industrialização que toma impulso para tentar reparar os danos produzidos pela política da escravidão e do café com leite dos primeiros trinta anos de República. Euclides embarca nessa. Vê aí, pela análise da história, que é hora de ganhar dinheiro e fazer crescer a cidade pra ganhar mais dinheiro ainda, num efeito retroalimentador.
De seus primeiros anos à frente da Prefeitura fica o aperfeiçoamento dos instrumentos legais do Município, tais como códigos de conduta, de cobrança de tributos, de saúde e saneamento e até de ecologia como seja a proteção de nascentes e leitos de rios.
E ele manda cobrar os impostos. Uma saraivada de impostos e taxas municipais, uns já existentes e outros licenciados pela Constituição de 1946, faz com que o Município comece a ter dinheiro para executar obras. Afeito ao efeito político, Euclides passa a abrir alinhamentos para futuras ruas, muitos deles que somente se confirmariam na década de 70, quase dez anos depois de sua morte.
Sua busca por novidades e modernização fez surgir na cidade, maliciosamente plantadas pela oposição, as supostas patadas do "tabaréu" como assim a ele se referiram durante anos. Nesta onda de populismo, Euclides não chegou a instalar uma emissora de rádio, mas percebeu a importância da palavra amplificada e ao vivo dos serviços de auto falantes e estes se tornariam então corriqueiros na propaganda quer de cunho institucional, quer meramente político, na maioria das vezes. Ficou lendária sua luta para a construção de um campo de pouso, pomposamente anunciado como aeroporto, em cuja história se inspira o jornalista Sebastião Nery(*) para exemplificar um pouco do jogo de interesses no poder. Enquanto isso, anedotas não faltam.
Tendo a Vila de Itabaiana ao ser emancipada 1888 pouco mais de 2.500 almas, em 1950, seis décadas depois, quando Euclides Paes Mendonça assumiu a Prefeitura contava a urbe com menos de seis mil habitantes (5.746). Em 1960, entretanto, mesmo sem a presença de água encanada a cidade já tinha pulado pra 11.050 habitantes - quase o dobro. Contribuiu para isso a entrada em operação de alguns serviços como a melhoria das estradas e dos transportes, além de um uma mini infra-estrutura em saúde que começava a ser montada. A esse fluxo de crescimento decenal de 92% se contraporia o do da década seguinte - 1960 a 1970 - cujo ficou na marca de 48%, apesar do amplo movimento de êxodo rural verificado a partir daí em todo o Brasil.

Trauma Geral
Salvo os adversários mais rigorosos, suspeitos até de conspirarem pelos acontecimentos de 08 de agosto, a cidade ficou pasma depois daquele dia. Em geral, os oposicionistas queriam Euclides fora da Prefeitura e do poder, de preferência humilhado pelas urnas; nunca morto e servindo de assombração a pelos menos duas gerações futuras. Seu nome foi manchetes em jornais de todo o país dado a sua condição de Deputado Federal, assim como o fato mais trágico ainda de o macabro evento também ter ceifado a vida de seu filho e também deputado. Foi também o fato de ser Deputado Federal que fez vir a Sergipe membros de uma CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito, da Câmara dos Deputados para investigar o ocorrido. Ninguém disse nada; pareceu que o assassinato duplo tivera sido coisa da imaginação.E os Deputados investigadores da CPI voltaram para Brasília de mãos vazias. E a cidade acordou para um pesadelo.
No partido dos Caras Pretas, como era então denominado jocosamente pela oposição, ninguém à altura pra substituir-lhe: Euclides era simplesmente insubstituível. Pelo lado dos Rabos Brancos, também jocoso nome com que devolviam os udenistas aos seus adversários, o maior nome era do ex-Deputado Manoel Francisco Teles, cuja força viera apenas das maquinações partidárias do Estado, mas que por si só nunca a tivera tanta. E estava em franca decadência ficando na quinta suplência na eleição à Assembléia Legislativa em 1966 com 1.783 votos. Na mesma eleição, a nova força que despontaria a partir daí, a de Francisco Teles de Mendonça - Chico de Miguel - conseguiria 3.202 votos, sendo o sétimo colocado entre os 32 deputados eleitos.
O Município entrou em polvorosa com a falta de um líder de peso e ao fato traumático de 08 de agosto de 63 veio se juntar as dificuldades a partir de 31 de março de 1964 com o golpe de Estado dado pelas elites econômicas do país e pelos militares.
Somente a partir de 1966 Francisco Teles de Mendonça começaria sua caminhada cujo ápice se deu aos poucos e em duas etapas: a do controle total da Prefeitura a partir de 1977 até 1988; e a conquista de uma cadeira estadual e uma federal em 1990.
A década de 60 foi quase toda perdida para Itabaiana.Tudo que foi feito no período veio por efeito retardado do que Euclides havia plantado anteriormente. Inclusive o título de Cidade Modelo, uma espécie de ouro de tolo que em nada ajudou o Município.
Os investimentos em infraestrutura somente voltariam a acontecer depois de 1975 e no período, apenas o asfaltamento da BR-235, obra federal e sem nenhuma influência do Município em 1972, aconteceu. Concorreram para esta queda, como já dito, as políticas centralizadoras do movimento de 64, inclusive em suas grandes crises financeiras de 1964 e 1967.
A novidade administrativa que seria o período de Filadelfo Araújo foi procrastinada pelo golpe branco do Governo Médici que abreviou seu mandato para apenas dois anos. Esta, tendo sido a administração em que mais se arrecadou em Itabaiana na história dos tributos municipais, caso tivesse as contrapartidas e as condições de planejamento para o quatriênio como inicialmente apontadas teria aí sido o retorno ao progresso verificado na era euclidiana.
A sensação de orfandade reinou por mais de dez anos.

Quem matou Euclides?
Euclides Paes Mendonça, pelo que ainda se ouve na cidade foi um homem intrépido, voluntarioso e que fez muitos lacaios e poucos amigos entre as gentes importantes, do Município e do Estado.
Hábil negociador e negociante, inaugurou a política da corrupção eleitoral à base do dinheiro, a franciscana (pejorativamente falando) do "é dando que se recebe".Não que a corrupção não existisse já que desde o advento da República que em Itabaiana ia bem politicamente quem tinha os cargos do Estado na mão. Da Intendência, depois Prefeitura não contava de tão exíguos em importância e em remuneração. Euclides, a princípio não contava com Cartórios, Promotoria ou Juizado: comprou a todos. Está viva a lembrança de quando chegava nas pequenas mercearias ou bodegas da cidade e da zona rural e sendo dono de potente armazém, mandava turbinar os estoques de gente que não era lá tão fiel a ele. Com isso segurava o eleitor dissipador de opinião. Invariavelmente dava certo.De vez em quando alguém se insurgia e acabava dançando frente a concorrentes mais fortes, turbinados pelo chefe político.
Foi o primeiro político itabaianense a usar as benesses das viagens aéreas e com isso tentar arrancar recursos federais pra Itabaiana, por cujos, acusava a oposição, cobrava um cachê para si próprio. Sua intrepidez não se amainava frente à escrivaninha do Governador de plantão, mesmo que esse lhe fosse devedor pelo esforço que fazia para o eleger, depois vindo negar-lhe os pedidos. Ainda corre na cidade que um dos responsáveis pela trama que o matou teria sido o próprio Leandro Maciel, ex-Governador (1958-1962) e em tese amigo de Euclides.
De tantas histórias que o faz viver plenamente no imaginário itabaianense, mesmo depois de 40 anos fica, pois, a suspeita de que foi o seu modo de ação, ameaçador aos poderes centrais das oligarquias tradicionais do Estado que levaria os membros destas oligarquias a terem decidido pelo seu fim. Teria sido demais a um "Doutor" das famílias tradicionais ter que fazer reverência a um"tabaréu" analfabeto da Serra do Machado, de Itabaiana. Pouco importava a sua inteligência. Tivesse Mamede despontado com seu pegue-pague em Salvador mais cedo e Euclides talvez tivesse sido defenestrado mais cedo ainda da vida política de Sergipe.
Ao fim das contas, todos os que mais acidamente lhe fizeram oposição foram caindo um a um. Seixas Dórea, antigo companheiro que se passou para a vantagem do lado contrário deu demais com a língua nos dentes e foi preso pelos militares. Leandro Maciel, para contra-gosto dos militares se elegeu em 1966 ao Senado e perdeu fragorosamente em 1972 para um desconhecido de nome Dr. Gilvan Rocha. E com Manoel Teles, a desgraça se repetiria quatro anos e vinte e um dias depois daquele fatídico 08 de agosto.

O azar na cronologia da história.
Quando Euclides Paes Mendonça foi assassinado o país vivia sob tensão constante.
O Presidente da República eleito com a ajuda de Euclides, Jânio Quadros, renunciara seis meses depois de assumir. João Goulart, constitucionalmente o Vice-Presidente eleito - na época o Vice eleito era o mais votado de qualquer partido - e que era contestado veementemente, e principalmente pela UDN de Euclides, contestação assumida pela maior estrela nacional do partido, Carlos Lacerda.
O presidencialismo, depois da curta experiência do parlamentarismo tinha voltado, mas a oposição liderada pela alta cúpula da UDN preparava o golpe de março. O famoso comício da Central do qual Seixas Dórea participaria ali selaria a sua sorte. Tivessem os algozes de Euclides e Antonio se demorado mais oito meses e provavelmente Euclides estivesse completando os seus 87 anos no próximo 03 de novembro. Talvez até tivesse seu mandato cassado numa manobra partida daqui do Estado, porém, o fato é que os articuladores de sua morte não teriam tido a ousadia que tiveram. Como a ação corresponde a reação, é tido como fato de que a morte de Manoel Teles decorreu de vingança, logo, este mais velho talvez já tivesse morrido de morte natural, ambos sem nos deixarem essa triste lembrança histórica, e provavelmente Itabaiana bem mais importante do que é.
Quarenta anos depois, apesar de apenas 13 de poder, Euclides Paes Mendonça continua vivo. Mesmo que seu mausoléu no Cemitério de Santo Antonio e Almas de Itabaiana não seja visitado como costuma ser o dos heróis ou vilões da história, seu nome sempre ecoa nas esquinas e nas reuniões onde o assunto política de hoje e de ontem se confundem.
(*) Link quebrado. Foi desativado pela Tribuna de Imprensa.