sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

O ALMEANTE

Duas verdades intrínsecas: a interação amorosa entre crianças e animais, e a capacidade delas de transgredir regras adultas para mais se adaptar a sobredita interação.
Como observa o grande Luiz Gonzaga em sua obra musicada, Sá Marica Parteira, cachorro de pobre é danado para ter o nome de peixe; já cachorro de rico, os nomes são sofisticados. Almeante, que deve ter sido a forma infantil de chamar almirante não foi nem de pobre, nem de rico; diria aqui que de remediados. A típica família que o criou o tinha na maior conta. Como de praxe, ainda hoje na zona rural costuma ter ao menos um cachorro. E a família em foco o teve, portanto como um membro da família. Porém com limites. Já para a pequena garota de quatro anos desta história esses limites era muito mais reduzidos.
Inverno no Agreste de Itabaiana, meados dos anos 1940, e aquela era mais uma família lutando por uma sobrevivência digna, a derramar suor na terra, dela esperando fartas colheitas com que iria abastecer os silos domésticos para o próximo ano, e vender os excedentes, como ainda hoje se faz, para ter dinheiro pra comprar roupa, calçado, mobiliário, material escolar, quando havia escola e apetrechos para o próprio trabalho. A lista sempre foi imensa. E todo bichinho trabalhava. Acima de oito ou dez anos já começava a ajudar em tarefas mais leves até atingir a fase adulta e operar o cabo da peroba - enxada – ou do rodo, a mexer massa de mandioca a transformando em saborosa farinha, torrando no forno, obviamente.
Ia-se à feira livre de Itabaiana aos sábados (a feira da quarta-feira só o foi a partir de julho de 1952) para vender algum produto da malhada (roça), e para adquirir insumos, quer para a manutenção da dispensa, naquilo que não era produzido domesticamente; quer para a execução do trabalho, de ferragens a esterco, vindo das fazendas do sertão, inseticidas, etc.. Carnes, especialmente de bois se comprava no talho de carne para toda a semana. Logo, nas sextas-feiras já se estava a raspar o restinho do estoque, à espera da reposição do mesmo no dia seguinte.
Como era da rotina, pela manhã, o pai se levantou antes do sol sair, tirou o leite das vacas, soltou-as e a bezerrama no pasto, preparou mais alguma coisa e foi chamado ao café. Enquanto isso a mãe foi à cacimba abastecer os potes, purrões e moringas, ralou o milho cozido e pôs o cuscuz no fogo para cozer, assou a carne seca ao sol, ferveu o leite, preparou a mesa e chamou o marido e a ainda pequena prole para o café da manhã, tendo já preparado e posto ao fogo a panela de barro com o feijão, deixando um luxuoso caldeirão de alumínio com carne temperada para deixá-la preparada antes de ir à malhada, acompanhando o marido, os dois filhos mais velhos e três pataqueiros contratados para aquele dia. Ia ser duro: abrir covas para plantar inhame sempre inspirou mais cuidados.
Tomaram o reforçado café da manhã, terminando-o ao mesmo tempo que os trabalhadores chegaram, se levantaram e seguiram ao canteiro de obras daquele dia. A pixuitinha, de menos de quatro anos ficou sozinha em casa, que não distava muito de onde executariam o trabalho naquele dia. Um grito naquele ambiente silencioso e estaria dado o recado.
Cantarolas, historietas, instruções de trabalho e as horas se foram passando. Numa época que se não usava relógio nem existia o rádio, quando deram por si o sol estava a pino. Lembrando que o sol a pino no mês de maio por aqui costuma enganar muita gente por conta da inclinação natural para o norte durante o inverno. Resolveram parar após concluir a eito. Ela, a patroa, parou antecipadamente para dar tempo providenciar alguma coisa rápida antes dos famélicos chegarem com suas fomes de leão.
Jogou o cesto com brotos de inhame a ser plantado de lado e se pôs em direitura para casa.
Chegou, tudo silencioso, porém achou normal: a pequerrucha era de uma calma angelical; não dava trabalho. Esperta, inteligente, mas quieta.
Encaminhou-se direta à cozinha para esquentar o que precisasse e... surpresa: não havia um só pedaço de carne dentro do caldeirão. Procurou terra debaixo dos pés e não achou. “Logo hoje”, pensou, “sexta-feira e com três trabalhadores de fora”? “Que aconteceu”? Enquanto o pânico lhe subia ao juízo, notou que a garotinha vinha chegando mansamente, mas demonstrando preocupação com a agitação dela. Ao mesmo tempo, pelo lado de fora, viu atrás da mesma um satisfeito almirante mastigando algo. E, num gesto de auto desculpa a garotinha destruiu toda a raiva e dúvida ao explicar:
“Fui eu, mamãe, que dei a carne ao almeante!”
Lágrimas furtivas, explosão de ternura e sabe-se lá mais o que, de risos dos que chegavam mesmo sem carne para o almoço e, almirante todo contente a balançar o rabo, de pança lisa.
Recebi hoje pela tarde a notícia de que a garotinha do almeante, ora uma senhora de filhos, netos e acho até bisnetos, no alto dos seus 80, senão completos, a completar... nos deixou.
Sua mansidão certamente ser-lhe-á valoroso passaporte.
Que o Alto a receba em Sua glória.

 

(Pataqueiros - ganhadores de patacas, moedas antigas com se pagavam no Segundo Reinado - D, Pedro II - os diaristas braçais na roças)