sábado, 12 de outubro de 2013

Lembranças infantis

Criei-me, como quase todos os meus vizinhos presentes e adjacentes, como um menino pobre. Mas pobreza nunca foi sinônimo de tristeza e infelicidade. Ao contrário de miséria; desespero. E, diante de nosso mundo de crianças pobres, a escola e sua tabuada movida a palmatória, os rituais sociais das rezas, sejam de vida ou morte; do dia a dia nas malhadas, e, claro, da diversão, porque ninguém é de ferro. E a diversão dos meninos, disparadamente era a bola. O joguinho de futebol na clareira do pasto de alguém – de fato, espaços dentro das matas de cerrados, tão comuns em nossa região - na encruzilhada das estradas vicinais, no pátio da escola, e até nos campos de peladas dos adultos. E aqui que entra um fato que me marcou.
Idos de 1971, povoado Forno, município de Itabaiana, próximo à estrada real Simão Dias-Laranjeiras – de fato, um atalho desta, em invernos mais rigorosos – uma bodega, das tantas que houve até bem pouco tempo atrás. A mesma foi montada inicialmente por alguém de quem não me ficou o nome, e logo vendida ao ex-vereador Olímpio Arcanjo de Santana, que nela operou por uns cinco anos. Olímpio Arcanjo de Santana é o nome que denomina o Plenário da Câmara Municipal de Itabaiana. Até recente e reconhecidamente na documentação, o mais presente vereador da trissecular casa legislativa, com oito mandatos, só agora sendo igualado por outro de geração mais nova. Mas, na época desse episódio, a bodega já pertencia a Seu Angelino Salgueiro, que tinha esse nome de Salgueiro por vir daquelas bandas dos sertões pernambucanos. Um sábado à tarde, qualquer, estávamos em  doze ou quatorze molecotes, traçando uma bolinha mixuruca, no campinho feito na encruzilhada defronte da bodega, aí por volta das quatro da tarde. Como linhas? Os limites das estradas, feitos por valados. Como traves? As indefectíveis “japonesas”, sandálias de borracha, ainda recentemente por aqui aparecidas, cuja marca mais famosa ficou as “havaianas”. A todo o momento tínhamos que parar porque, estrada, movimentada, sempre havia alguém por ali passando, cortando nossos lances geniais. Era convencionado entre as partes: assim que aparecia alguém de passagem, jogava-se a bola para o lado; e a cobrança do lateral, óbvio, era de quem jogou, porque por um ato de grandeza. De repente, naquele dia irrompeu cruzando através da estrada secundária o João, nome não fictício, mas que não aditarei sobrenome, já que o mesmo ficou mal na história. Montado num burrico, coincidentemente, antes que o víssemos e naturalmente parássemos a bola, a mesma foi chutada, justo em sua direção. O animal se espantou, obviamente, e se esquivou da bola, causando um susto em seu montador; e em nós, que tínhamos a noção da responsabilidade num eventual dano. Mas foi só o esquivar. O João era dessas figuras pouco afeitas à nobreza de caráter. Do tipo que, como cães vira latas, correm ganindo à menor pisada mais firme do chão, mas que, quando vê pessoas supostamente fracas, desprotegidas, gosta de posar de valentão. Desceu do animal, pegou nossa bolinha mixuruca e com uma faca peixeira trazida com bainha, na própria cintura, cortou a bola em quatro ou seis pedaços proferindo meio mundo de imprecações contra o nosso grupo. Seu Angelino, baixinho, franzino, de vista já um pouco enfraquecida, sentado numa cadeira de balanço no telheiro da bodega, viu tudo. Levantou-se calmamente, caminhando lentamente, como era de seu feitio, veio ter com o João, que estava uma arara. Já havia cortado a bola e continuava uma arara.
- João, o que foi que houve? – perguntou ele.
De imediato o João parou com a brabeza, se recompôs e respondeu:
- Bem, Seu Angelino, é que esses moleques aqui – não mais chamou ninguém de safado como estava a fazer – quase me derrubaram jogando a bola propositalmente em cima do burro pra isso!
Seu Angelino só disse:
- João, eu estava sentado ali na frente e vi tudo. Pague a bola dos meninos e acabou! 
Disse isso, e deu meia volta, sequer respondendo a outras indagações do João. Este, meteu a mão no bolso, perguntou quanto era uma bola nova, e, claro, demos o preço de uma bem melhor; pagou o valor, montou em seu burrico e foi embora.
Seu Angelino faleceu oito anos depois, de leucemia, sem nunca ter dado um tiro ou um tapa em ninguém; nem também recebido. Também não me consta que tenha travado nenhuma discussão litigiosa com ninguém. E eu, que já tinha lições e mais lições do meu pai, da mesma estirpe de Seu Angelino, seu amigo, fiquei com a exata noção do que realmente é autoridade.