sexta-feira, 18 de maio de 2018

O PT e a Revolução Taiping

Em 1830 nas ruas de Xangai houve um encontro inusitado: um jovem estudante chinês e um missionário americano, que pregava o cristianismo e falava do castigo divino do Dilúvio de Noé, purificador. Dilúvio ou inundação. Hong, na língua do jovem que se chamava Hong Xiquan. E eis que a China encontrou sua inundação purificadora; pra cuspir fora toda a corrupção de um império corrompido, invadido por estrangeiros que cada vez mais lhe sugava as riquezas e a alma chinesa. E o senhor Inundação mergulhou nos confins por longos 20 anos, a gestar a revolução restauradora. Em 1839, mais uma humilhação: a China perdeu uma guerra em que a Inglaterra a forçou consumir ópio, algo como nos dias de hoje os Estados Unidos obrigar ao Brasil a legalizar e promover o consumo de cocaína. Isso engrossou o caldo, ao ponto de em 1851 Hong ter cem mil homens, camponeses, em armas e à disposição pra de imediato conquistar a metade da China, e em seguida ameaçar o governo imperial em sua própria capital, Pequim.
O Imperador, que não ficara passivo desde os primeiros movimentos insurrecionais, antes mesmo do avanço da revolução, entrou em pânico, e, para liquidar os insurretos, cometeu o pecado mortal de aceitar a “ajuda” de um combinado de mercenários americanos, naturalmente acompanhados de perto pelo governo americano, e a união univitelina de banqueiros e governo inglês. Venceu os taiping; mas perdeu o país para os ingleses, que já lhe havia imposto a humilhante Guerra do Ópio – origem da HSBC – duas vezes, e logo a seguir impuseram-lhe mais humilhações até o fim do império, em 1912, e da própria república dita democrática, até a selvagem invasão japonesa, de 1937 a 1945.
A redemocratização lenta e gradual trouxe para arena política brasileira algo novo: a presença de um partido literalmente popular, tão popular que uma certa esquerda de vitrine cuspia de nojo “desse pessoal de macacão azul”, uma referência aos uniformes de operário, usados por eles, principalmente pelo seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva.
Ao contrário do chinês Hong, em 1830, o Lula, de 1968, não teve motivações messiânicas, não pregou revolução, não era esquerdista na acepção da palavra, sequer queria fazer parte de um sindicato. Ao fundar o PT, em 1980, não pregou revolução saneadora, messianismo, redentorismo... só queria melhorar a vida do trabalhador. Do pobre. Colhido pelo processo histórico viria a se tornar Presidente da República, sem rompimentos, cumprindo fielmente e que traçara seus futuros inimigos. Lula nunca devaneou; porém sempre perseguiu uma meta, e os caminhos para atingi-la: ir até onde der. De sonho real mesmo, ver pobre virando classe média, dentro do figurino traçado pela direita brasileira, em seus momentos de louvação hipócrita ao estado de bem-estar europeu. Nada mais!
Desde o seu início o Partido dos Trabalhadores colheu o escárnio da elite, do estamento. Em suas lutas internas teve que administrar puristas inconseqüentes, incendiários; recitadores de fórmulas prontas, biguzeiros e até gente séria e de juízo. Sua natureza popular, democrática - cada um, um voto – sem chefes muitas vezes levou-o a ser uma massa caótica, disforme, perigando a qualquer momento sofrer implosão. Salvou-o a presença forte da liderança visível, admirada de Lula, e o comando firme, odiado, mas imprescindível de Zé Dirceu. E o partido caminhou. Miraculosamente caminhou. Sem exércitos, sem milícias, tudo dentro “da Lei”, ou seja, do traçado pelos donos do poder.
Foram 14 anos à frente de uma nação, dividida em seu modo de pensar, mas mantida com coerência institucional, integridade territorial, crescimento econômico exponencial, sucesso de ponta a ponta; exceto a remoção da cultura escravista, que promoveu o desastre. Não se combinou com os senhores de escravos. E eles trocaram o Brasil por espelhinhos.
E o que deu errado?
Mas a cultura escravista da sociedade brasileira permanece intocada; a Casa Grande jamais iria permitir essa ousadia da Senzala. Por mais que os senzaleiros tentem ser agradáveis, a Casa Grande não os permite ir tão longe. E no desespero foi capaz de cair no ridículo explícito; de baixar a mais reles de todas as condições; de cometer o mesmo erro do Imperador chinês em 1864. E agora, enquanto os vira-latas se comprazem com o martírio de Lula, os raciados se já dão conta do estrago que fizeram colocando o inimigo, não mais na sala, de onde de fato nunca saiu, mas na camarinha de tantos segredos íntimos e vitais. É tarde!
2016 é muito pior que 1889. Muito pior! 
Que Deus tenha piedade de nós!

domingo, 13 de maio de 2018

Uma Mãe Menininha

Em seminário da SM da Saúde, 12/03/09
Maria de Jesus Andrade, ou Menininha de Pedro Severo, do Pé do Veado, era professora primária municipal (depois professora de religião, do Estado, no Murilo Braga), e foi a pessoa certa encontrada pelo Monsenhor José Curvelo Soares, então pároco de Santo Antônio e Almas, consequentemente presidente do CASCI-Centro Social Católico de Itabaiana, instituto que tem uma folha corrida extensa de serviços a Itabaiana, e que contou com próceres da sociedade itabaianense em suas diretorias, como Adelardo José de Oliveira, José Hênio Araújo, Francisco Tavares da Costa, José Queiroz da Costa, entre inúmeros outros. E Menininha, aliás, D. Menininha foi pilotar a Casa dos Estudantes por longos dez dos seus quatorze anos de existência da mesma como república estudantil.
A Casa do Estudante foi mais uma das instituições criadas pelo CASCI, com a finalidade de suprir um antigo sonho da Itabaiana esmagadoramente rural e agrária, portanto, com o advento de uma escola agrícola, que nunca saiu das intenções. Uma das últimas realizações do paroquiato do padre Arthur Moura Pereira, ficou latente sob aquele e sob o curto período do padre José Araújo Santos. Veio funcionar com destinação secundária, ou seja, de república estudantil, a partir da chegada do Segundo Grau na cidade, em 1970, decisão do Monsenhor Soares, animado pelos resultados positivos da Escola Técnica de Comércio, hoje CTP-Centro de Pastoral.
Ficava num sítio na periferia da cidade, na quadra compreendida entre as avenidas 13 de Junho e Manoel Francisco Teles, e as ruas Pedro Diniz Gonçalves e Quintino Bocaiuva, a do SENAC, Colégio Djalma Lobo, Secretaria Municipal de Educação e Energisa, que lhe ficam de frente. Dividia-se em três unidades, a saber, a Casa dos Meninos, o Refeitório, para ambos, a Casa das Meninas, único que estava dentro da cidade, na esquina da Avenida 13 de Junho com Quintino Bocaiuva, já com formação urbana, reconstruída e atualmente abrigando alguma coisa da Prefeitura. O resto, sítio.
D. Menininha chegou na Casa em 1973, Depois de malsucedidas gestões outras em bem conduzir três e até cinco dezenas de jovens e adolescentes, com os hormônios lá em cima e a rebeldia própria de quem está para o despertar da vida plena. Vinha de uma família interiorana típica, exceto no número de seus membros; religiosa, conservadora. De repente se viu diante de membros das mais estranhas tribos. Houve momentos da Casa contar com pessoas de 40 localidades diferentes.  Era muita diversidade! Solteirona, nunca sequer namorou, e de família pequena para os padrões da época, era de se esperar que a falta de experiência em lidar com tal diversidade público a conduzisse a rotundo fracasso; mas não.
Com sua personalidade explosiva, acelerava em dez segundos, ficando vermelha como uma pimenta, quando alguma coisa a contrariava; do mesmo modo desacelerava, e logo estava rindo com aquele sorriso quase infantil, porém sem jamais abrir mão da firmeza, dos princípios. Determinada, virou motorista de seu fusquinha azul celeste em 1977, numa época de raras motoristas por aqui.  Tinha prazer em servir.
Era só gerente da Casa, mas não raras vezes emprestou dinheiro aos seus pupilos, que por um motivo ou por outro a mesada atrasou. Era solidária até nas desilusões amorosas da garotada. Desde que não envolvendo membros “da família”. Nada de namoricos entre membros da casa. Tinha um faro exemplar pra evitar problemas e sabia muito bem do que era capaz a menor quantidade possível de pólvora perto da menor fagulha. Viveu cada momento da vida de cada um de nós que pela casa passamos nos dez anos que a dirigiu. Mais que uma gerente e até uma preceptora: uma segunda mãe.
Hoje, dia das mães, ao ouvir Maria Bethânia e Gal Costa cantando o clássico de Caymmi, Mãe Menininha do Gantois lembrei dessa passagem que me marcou. A Casa, no seu plantel feminino sempre possuiu exemplares que “olho ruim não podia ver”. Meninas belas, meigas, o que elevava a testosterona da macheada, só de nelas pensar. Mas o controle era rígido: terminou a refeição, único momento de congraçamento sob os olhares vigilantes de D Menininha e sua fiel escudeira, Zefinha, logo vinha a ordem: todo mundo se recolher aos seus aposentos. Mas a inteligência é criativa. No princípio do segundo semestre letivo de 1975, de repente resolvemos fazer uma serenata para as meninas; e aí, a galera chegou no pé do murinho na delas, já sabendo que viria bronca de lá pra cá. Tombeira (nome de guerra de Antônio Beltrame), adolescente, mas já era baixista no conjunto Musical Embalo D, de Nossa Senhora das Dores, à época um dos melhores do estado - e era, claro, o nosso artista - no violão; Fernandão, Eduardo, Aluísio, eu, Valtênio, e outros a cantar. De repente a luz acendeu no interior do casarão! Já esperávamos mas.. era ela, D. Menininha.
De imediato a música mudou. E entoamos em coro a Mãe Menininha do Gantois. Nem sequer atinamos que poderia ter efeito inverso, já que D. Menininha era católica tradicional, e a música louva, de certo modo, ao candomblé. Qual nada! Uma cara sorridente apareceu na janela que se abriu, para, mesmo por trás de um belo sorriso ditar a firme ordem: "vão dormir, meninos. Já está tarde viu?"
Fechou a janela. E satisfeitos saímos cantarolando a Mãe Menininha do Gantois pelos cem metros de estrada que nos separava, com aquele sorriso típico de mãe em nossas mentes para mais uma noite de sono.
Saudades!