quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Toco, prodoco!

Na virada do século XIX pro XX o mundo andava de cabeça pra baixo por aqui.
Houve o fim oficial da escravidão; em que pese ainda hoje, um século depois, serem claros os sinais de sua presença, isso não satisfez ninguém: escravos se sentiam traídos e abandonados; nem escravos eram; muito menos tinham cruzado a linha da ignomínia para a da dignidade porque, tinham sido literalmente abandonados. Sem nada, jogados no mundo. E seus antigos donos, óbvio, se sentiam traídos pelo governo que simbolicamente rompera com aquele mundinho desgraçado de que tanto gostavam.
Como reflexo do que já era esperado – o fim da escravidão – a elite escravagista, à frente cafeicultores paulistas e remanescentes fluminenses promoveram o golpe da República, num modo que se tornaria padrão: o de alugar as Forças Armadas para executarem o serviço sujo. O fim do rei era o fim das esperanças pro populacho que, mesmo sendo um ser quase mítico, de tão distante, mas sempre existia a esperança “que o rei” ia fazer justiça. Iria enquadrar os bandos ensandecidos de patrões trogloditas, pouco importando o fato de serem ou não estudados. Abandonados em todo por todos os modos, muitos buscaram se agarrar a algum naco de esperança, por mais fantasiosa que fosse, como o Arraial de Canudos. Mas, este também fora trucidado pelas mesmas forças que tinham deposto o Imperador. Não sobrou pedra sobre pedra.
Fim de século, para o universo e todas as criaturas vivas não inteligentes, segundo a inteligência humana, não é nada! Inexiste. Mas, para a mentalidade humana, a simbologia tem um poder imenso, e fins de séculos sempre querem dizer algo fantástico. Mesmo que ele seja desencontrado entre as várias culturas. Chineses comemoram em certo dia e ano; muçulmanos em outros, indús e, claro, cristãos, diferentes de todos eles. Para culturas mais primitivas, simplesmente inexistem; mas, para a arrogância dos cristãos – mesmo não cristã, obviamente - têm um peso fundamental. O caldo cultural de fim de mundo engrossou, a partir de 1895.
No povoado Cajaíba, onde tem origem parte da minha família existia uma família de brocos. Assim eram considerados por serem pessoas humildes, muito tolas, sem muito discernimento; quase primitivas. Mas religiosas. Ouviam tudo que era pregador, especialmente os populares, porque estes falavam em português – os padres só rezavam em latim. Numa quente tarde de verão de 1899, fim de semana, logo antes do sábado de feira “na vila” de Itabaiana, o patriarca puxou conversa com a esposa sobre o fim do mundo que estava próximo. Verão seco, com inverno anterior tendo pouco produzido em sua pequenina roça, restou-lhes apenas uma galinha e uns dois “litros” de feijão branco na dispensa, de semente, para plantar quatro ou cinco meses depois, se finalmente as chuvas desses o ar da graça. O papo “profundo” sobre o fim de mundo... evoluiu. Então, chegaram a uma conclusão: comer logo a galinha e o feijão, porque, quando o fim do mundo viesse estariam todos de barriga cheia. Não sei o que isso tem de vantajoso, mas pra eles havia vantagens, sim. Mas aí surgiu uma dúvida: e se o mundo não acabasse? O clima de dúvida ficou insuportável, como toda dúvida. Essa maldita coisa que culturas várias tem-lhe dados nomes como diabo, demônio ou satã, entre outras. Então, o que fazer? Ora, consultar o mestre Fulano, “que pega nas papelamas do céu. O que ele disser, é a verdade”. O mestre Fulano, o intelectual do povoado - por isso é que pegava nas papelamas do céu – Conhecia muito bem a família; mas, claro, não lhes conhecia o drama que viviam naquela tarde. Ao ser consultado se o fim do mundo estava próximo, talvez até em tom de brincadeira foi logo asseverando.
A galinha estava choca, deitada num canto do pequeno telheiro da casa. Mas caia na faca assim mesmo. Horas mais tarde, os curiosos que já sabiam da consulta feita ao “oráculo” do povoado apareceram pra visitar o casal e lá estavam eles, comendo até se empanturrarem, derramando lágrimas de tristeza “pela despedida”, e também pelo prejuízo de perder os últimos bens que tinham em casa, fora os tostões que, naturalmente, seriam deixados pra qualquer santo, mesmo depois de o mundo acabar. Enquanto comiam, iam recitando algo inventando naquele momento: “Toco, prodoco; feijão branco, galinha choca. Amanhã vamos estar na glória de Deus”. E repetiram, e repetiram, até acabar o último grão de feijão e pedaço da galinha.
No dia seguinte, doentes pela comilança excessiva, esperaram o fim do mundo que não veio. Mais um dia, uma semana, meses... o galo cantou na primeira madrugada de 1901, e nada de o mundo se acabar. Para ele acabou-se em 1907, numa “congestão”, nome genérico para doenças de que se não conhecia. Cinco anos depois o mundo também acabou pra ela, que morreu “de repente”. Possivelmente um infarto.
Ao observar a politicagem com altas doses de tentativa de extorsão ao governo, promovida pela mídia nacional, e consequentes reações positivas de agentes econômicos, especialmente no meio empresarial, vem-me sempre à mente histórias como esta; passada ao meu pai pelo seu pai, meu avô, nascido em 1888 e falecido em 1969. E a sabedoria popular: “É dos bestas que se valem os sabidos”.  Quanto mais tolos angustiados com o clima de fim de mundo decretado pela imprensa brasileira e mídia em geral, desde 2002, frise-se, mais rios de dinheiro os espertalhões vão ganharem em cima do desespero dos tolos.