domingo, 6 de março de 2022

SINA DE ESTRADAR

 

Vai olhando coisa a granel
Coisas que, pra poder ver
O cristão tem que andar a pé
(Teixeira- Gonzaga in Estrada de Canindé)

 

O Caminho de Santiago ou Via-Láctea

Lá se vão mais de cinco décadas que eu, molecote de oito a onze anos, nas noites escuras com céu límpido, deitava-me sobre a relva de frente à minha casa, no sítio, já noite adentro e ficava em silêncio, papo pra cima a perscrutar a abóbada celeste e seu manto infindo de estrelas de todos os tipos, brilhos e tamanhos. As Sete Estrelas e as Três Marias, além do Cruzeiro do Sul, eram as que mais me chamavam a atenção entre as constelações, mas tinha também o Rosário de Santo Apolônia e outros elementos com o Pote do Inverno que me prendiam. Este, o Pote, por motivos óbvios: repassados por pai desde gerações muito antigas, sua forma significaria bons ou maus invernos. Se na arrogância tecnológica dos dias atuais, o inverno e sua intensidade pouco importam, mas continua vital – ninguém vive sem comer – e, naquela época e no meio rural era a principal preocupação da sociedade responsável por alimentar bocas.
E aí vinha o espetáculo principal: o Caminho de Santiago, a Via-Láctea dos astrônomos. Era como uma cidade longínqua, em que, além de se ter os bicos de luz potentes – a estrelas – tem também os “salões” ou espaços onde há tanta luz que o céu noturno fica branco como leite; daí o nome Via-Láctea ou Caminho de Leite.
Hoje a poluição luminosa não nos deixa mais ver o esplendor noturno do céu e a nossa Via-Láctea, já que segundo a astronomia, nossa pequena bola azul, solta no espaço e pertencente ao Sistema Solar também à ela pertence.
Também hoje não ouço ninguém mais a falar em Caminho de Santiago, denominação provavelmente trazida pelos sefarditas que aportaram a esta terra em fins do século XVI, em repetição, possivelmente ao já tradicional Caminho de Santiago de Compostela, na Galícia, berço de Portugal, mas atual província espanhola.

Mas o turismo tradicional não explodiu. Entretanto, o velho turismo espiritual, onde para absorver as belezas “o cristão tem de andar a pé” – a peregrinação vem ganhando cada vez mais força.

O peregrino, saudando aos caminhantes ao saírem

 

 Corte rápido, Santiago de Compostela lá está desde a baixa Idade Média, a receber peregrinos, em maior ou menor intensidade, porém, a modernização e enriquecimento espanhol do último meio século tornou o que era hábito de poucos uma febre a quase todos os buscadores de paz interior pelo autoconhecimento via relaxamento espiritual. E não há forma mais fácil, sutil, prazerosa e eficiente que realizar isso em médias e longas caminhadas.
Porém a peregrinação se expandiu. Saiu dos centros tradicionais – que se mantém – mas já chega a santuários, antes menores e não para de crescer.
Na década de 1990, com o fim do comunismo soviético e ao mesmo tempo o advento dos robôs e melhoria do maquinário produtivo em geral, achou-se que a primeira década deste século XXI seria de puro lazer. Enormes investimentos foram feitos mundo afora em transportes, hotelaria, infraestrutura, enfim. Mas o turismo tradicional não explodiu. Entretanto, o velho turismo espiritual, onde para absorver as belezas “o cristão tem de andar a pé” – a peregrinação vem ganhando cada vez mais força. Agora, tudo pronto para assim que as condições sanitárias se mostrarem favoráveis, a Associação Sergipana de Peregrinos começar a operar um segundo milagre: O CAMINHO DE SANTA DULCE DOS POBRES.

Agora, tudo pronto para assim que as condições sanitárias se mostrarem favoráveis, a Associação Sergipana de Peregrinos começar a operar um segundo milagre: O CAMINHO DE SANTA DULCE DOS POBRES.

Sergipe, e Itabaiana e São Cristóvão em particular foram abençoados por Deus, pode-se assim dizer.
São Cristóvão, quarta cidade e vigésimo município mais antigo do Brasil, planejado pelo império de Felipe II d’Espanha, mais finalmente executado por Portugal, na reconstrução pós-invasão holandesa foi onde “nasceu” Santa Dulce, assim renomeada a noviça Maria Rita, natural de Salvador. Aqui ela fez seus votos como Dulce. E caminhou, sem a intenção de o ser, à santidade.
Itabaiana, a mítica terra da prata e do ouro, primeiro curral de abastecimento em larga escala na história do Brasil, no século XVII foi a terra onde se realizou o primeiro milagre de Santa Dulce.
São Cristóvão e Itabaiana foram pontos referenciais nas longas estradas reais que ligavam Salvador a Olinda. O “Caminho do Mar”, por São Cristóvão, Riachuelo, Divina Pastora, Japoatã e Brejo Grande; e o “Caminho do Sertão do Meio”, por Itabaiana foi trilhado por caminhantes, especialmente jesuítas e membros das outras ordens, em suas longas jornadas a pés cerca de dois séculos, o segundo; e três, o primeiro.
Agora, tudo pronto para assim que as condições sanitárias se mostrarem favoráveis, a Associação Sergipana de Peregrinos começar a operar um segundo milagre: O CAMINHO DE SANTA DULCE DOS POBRES.
Dividido em etapas, o Caminho fará basicamente o trajeto da estrada real CAMINHO DO MAR, a partir de Aracaju até Salvador. E, de Itabaiana a Aracaju, começa na esquina da Maternidade São José – local do primeiro milagre de Santa Dulce – segue pela estrada da cidade ao povoado Serra, aí entrando nos domínios do Parque Nacional da Serra de Itabaiana. Dentro do Parque atinge o Parque dos Falcões e daí até o Portal do sobredito Parque Nacional, popularmente, entrada para o Poço das Moças. Mais uma etapa até o Ecoparque Boa Luz e sua estrutura. Outra até a colina do Bairro Santo Antônio (onde institucionalmente Sergipe nasceu) e sua capela; e a matriz da paróquia Santa Dulce dos Pobres, na Praia de Aruana, sul da capital sergipana.
As belezas cênicas são incomparáveis. A estrutura física de apoio, visual e o patrimônio imaterial, também. De tirar o fôlego d”o cristão que andar a pé”.
No trecho Itabaiana-Aracaju são 61 km de pura magia, sem pressa, saboreando, desde os riachos de água límpida ao cheiro vegetal dos trechos de cerrados e mata atlântica do Parque, ao cheio doce dos canaviais do velho Vale do Cotinguiba.

Não faltarão lendas e referenciais históricos, folclóricos.

O Caminho, logo ao sair da cidade (Cortesia: Eduardo Andrade)

Em Itabaiana, antes da saída, tem-se a opção de viver o nascer do Ciclo do Gado na História do Brasil, ao visitar as ruínas da Igreja Velha; a velha, apesar de modificada Matriz de Santo Antônio e Almas, e em frete a essa, visitar o Santo Antônio Fujão e se deliciar com a lenda. Também aí, o mundo lúdico do jovem professor de latim, Tobias Barreto de Meneses, seja onde residiu, seja na Praça Fausto Cardoso, ao pé da sua estátua em frente à Filarmônica Nossa Senhora da Conceição onde tocou. Ainda na Praça iniciar a visita à Feira Livre pela história da sua criação a partir das enormes feiras de algodão da década de 1860, antes de na própria Feira penetrar por uma das vias de acesso.
Ao sair da Feira em direção ao ponto de saída – Na Maternidade São José – uma pausazinha na encruzilhada das duas estradas reais seiscentistas – a dos sertões do Jeremoabo, e o “Caminho do Sertão do Meio”: o canto nordeste do Praça João Pessoa, no quiosque e Praça de Táxi.
Na rótula do loteamento Villa-Lobos, uma pausa para registro espetacular: peregrino, totem “Eu Amo Itabaiana” tendo a serra grande por fundo. Dois quilômetros e oitocentos metros adiante, na terceira encruzilhada, um encontro repetido com o “Caminho do Sertão do Meio”, antes da fundação da povoação de Itabaiana e no tempo dos holandeses. Também da lenda dos matapoanes, atribuída aos índios boymé, já que próximo ao povoado Boimé. Mais mil e seiscentos metros e para quem albergou-se no Irmão Sol, Irmã Lua, será hora de limpar as gavetas para a grande jornada, primeiro ao Parque dos Falcões, a seguir revivendo um pouco a saga de Melchior Dias Moreia, o Parque Nacional e pé na estrada.

Loteamento e condomínio Villa-Lobos (Cortesia Juarez Ferreira de Góis)