terça-feira, 15 de novembro de 2022

UMA QUASE BIOGRAFIA

 

 Anteontem pela noite, depois de quase três anos na Praça Chiara Lubich, em frente ao condomínio de mesmo nome, e ao fim da avenida Rinaldo Mota teve lugar mais um grande evento cultural de mão cheia: o lançamento da biografia de Edson Passos, regado a, nada mais nada menos de mais um caprichadamente fantástico show de Amorosa.
Amorosa, em si já é um show permanente. Comunicadora nata, minha confreira na Academia Itabaianense de Letras não é uma simples e excelente cantora; ela canta, interpreta, poetisa, faz trovas, tudo planejado ou se e de vez em quando dá um banho de improviso versejado que nada fica a dever aos titãs da viola e do cordel nordestinos. Uma completa atriz que tão bem canta.
Às vezes sou levado a especular mentalmente que Amorosa não se tornou um grande nome nacional – ainda – por ser grande demais para ser embalada para consumo pelo show business.
Curiosamente a Avenida Rinaldo Mota, nascida meio tímida, quase envergonhada no finzinho dos anos 80 (nem nome já tinha), onde Edson Passos resolveu por em prática o aprendizado na construção, desde escriturário numa marmoraria justo quando estava sendo projetada a sobredita Avenida foi a ampliação do curso de outro empreendimento da expansão urbana, realizado por Euclides Paes Mendonça em 1954, tão logo chegou a BR-235, cujo leito de então é hoje a Avenida Manoel Francisco Teles: a 13 de junho, assim denominada pela Lei Municipal 136, de 30 de junho de 1955.
“V - Rua 13 de junho, que acha-se compreendida entre a Avenida Dr. Carlos Reis e a Rua Quintino Bocaiuva, acha-se localizada entre o subúrbio e a Rua do Ginásio e com prolongamento em ambos os sentidos, nascente e poente.”
Destinada, pois, a ideia, arrojados e seus timoneiros.
E sobre Edson Passos, foge-me uma categorização precisa, mas tentarei fazê-la.
O encontrei em fins da década de 1980, mais um ceboleiro lutando pela sobrevivência como a quase totalidade dos moitchapans(*). Voltei a encontrá-lo na segunda metade dos 90, já pequeno empresário no mesmo ramo, com o firme propósito de fazer um curso arquitetura, estimulado pelo agitador Altamiro Brasil (Esse moço me deve!). Sincera e interiormente desaprovei; mas como o cabra tava todo animado e no fogo posto por Brasil, assenti levemente e deixei rolar.
Pouco depois soube que entrara de cabeça no seu primeiro projeto imobiliária: o Loteamento Mandacaru.
Ideologia e dinheiro, negócios, investimentos costumam dar em divórcios litigantes e traumáticos. O nome Mandacaru eu desaprovei na hora; mas me mantive calado. Foi mais ou menos bem sucedido. Algumas ruas traçadas só agora de dez anos para cá foram efetivas, porém... o padrão de loteamento finalmente mudou. Não mais o abrir de ruas na poeira, sem pavimento, sem redes de água, esgoto, eletricidade e iluminação pública como comum até ali.
E aí o Edson “endoidou” de vez: conseguiu lançar o Projeto Chiara Lubick, loteamento e condomínio. Mais ainda: conseguiu convencer gente mais comedida que o habitual a entrar no negócio; que, honestamente, bem arriscado e meio megalomaníaco. Se não estou sendo parcimonioso.
Durante sua história, a cidade de Itabaiana, fundada em 30 de outubro de 1675 num lugar seco, originalmente chamado de caatinga nunca segurou população; e, especialmente depois da chegada da BR-235 que se converteu num posto avançado de emigrantes rumo à capital.
Ao nascer da cidade, sua única vantagem estratégica, a de ser um entroncamento das estradas das Entradas, pros sertões, e da grande estrada real, o Caminho de Sertão do Meio Olinda Salvador, quando a povoação foi emancipado de São Cristóvão, em 1697 já não mais tinha função relevante, visto que o trânsito era quase todo feito por mar, ou pelo Caminho do Mar, no litoral, obviamente. Nenhum atrativo tinha Itabaiana para segurar seus próprios filhos; muito menos para atrair pessoas de outras plagas. E assim atravessou os séculos XVIII, XIX e metade do século XX.
Com a chegada da BR-235 não mudou muito. Mais dez anos sem água encanada(mais trinta de penúria total no abastecimento); mais vinte sem a mesma BR-235 asfaltada e até 1989 o único hospital era inexpressivo.
Como dar certo um empreendimento que compreendia moradias de alto luxo, e desacostumado disso em escala maior? Já havia um caso recente; todavia bem menor, e de fato feito a fórceps. À base de ajeitamento, mais com vistas à especulação que à ocupação de rotina. O mercado teria espaço, num lugar de muito dinheiro, mas de elevado investimento na capital?
Mas deu.
A cidade que ainda exporta grande parte de sua renda, em forma de investimentos e até de pessoas mais bem aquinhoadas e profissionalmente qualificadas; no entanto reduziu essa transferência e, mesmo com o desabar da natalidade dos últimos vinte anos espera-se que quando terminar o recenseamento ora em ação, finalmente possamos passar da faixa dos 100 mil habitantes e dos cinco por cento da população estadual a que somos submetidos desde a emancipação de Ribeirópolis, há 90 anos.
Mas a importância maior dos atos do arquiteto e urbanista Edson Passos, visíveis nos condomínios por ele desenvolvidos não se resume a eles.
Como o Mandacaru foi um paradigma para a administração municipal romper com o velho estado a que estava amarrada, o Chiara e sua estrutura ecoou até além fronteiras municipais tornando-se modelo até mesmo em urbes bem mais pequenas que Itabaiana.
Era inimaginável as pistas de caminhadas das nossas avenidas – do sistema Chiara e além dele – e seu enorme movimento às manhãs e tardinhas atual há 15 anos, em 2007, pois.
A cidade ganhou enormemente em qualidade de vida.

O preço invisível.

Infelizmente nada se ganha sem perdas.
Desabou a especulação imobiliária (os conjuntos populares do Minha Casa Minha Vida foram a pá de cal); saímos da mesmice administrativa urbana; reinvestimos pequena parte do que iria pra fora, especialmente à capital; adquirimos novos bons hábitos, porém, infelizmente nos isolamos muito mais.
Pela natureza dos tempos e do próprio empreendimento, em geral murado, se já não se encontra amigos com a mesma frequência e, chegar às suas vivendas é constrangedor por ter que ser barrado nas sucessivas portarias. Amizades condenadas à morte.
A política dos condomínios não inventou esse apartheid; ele já vinha vindo, célere e cada vez mais acintoso à medida que a paranoia com segurança foi ganhando terreno diante da escalada da violência. Todavia, é inegável que os condomínios mais avultaram esse estado. Juntando-se com a tecnologia de comunicação, que paradoxalmente mais solidão gera, e o estado geral de insegurança, cada vez mais segmentados ficamos. E nisso até a religião influi.
Hoje temos muito mais evangélicos, segmentados em inúmeras igrejas e até a velha matriz de Santo Antônio e Almas, mãe de Itabaiana, hoje sofre a concorrência de mais outras seis paróquias. Para se analisar socialmente isso, eu nasci no povoado Mangabeira, mas que à época pertencia à Paróquia de Nossa Senhora da Boa Hora, de Campo do Brito, e assim o tinha sida desde 1845 quando a Paróquia de Santo Antônio e Almas foi dividida pela primeira vez. Como resultado de praticamente cem anos de isolamento dos fregueses de uma paróquia em relação à outra, os itabaianenses do vale do Jacaracica, Jacoca-mirim e margem direita do rio Sergipe em geral são quase todos parentes, próximos ou não; mas pouquíssimo parentesco há com o pessoal dos vales dos rios das Pedras, Traíras, Lomba e Jacoca, originalmente na Paróquia de Nossa Senhora da Boa Hora.
Todavia, “o tempo não para”, como diz o poeta pop. E, como diz o outro, “Nada do que foi será do jeito que já foi um dia”.
E, homens que realizam não podem se deter em possíveis detalhes negativos já que buscam sobrepô-los com suas ideias, bem além daquilo que se perdeu.
Ainda não li, obviamente, a trilogia que compõe a biografia do meu particular amigo Edson Passos.
Ah, e quase biografia porque definitiva somente quando se morre. E o sujeito, para usar um termo do saudoso Oviedo Teixeira está começando a engatinhar.
Compromisso vindouro.

(*) Estudos nesse sentido, não os há; não conheço. Mas tenho fortes indícios que os matapoanes (moitchapan, no linguajar popular) foram o últimos valentes a cair sob a descomunal força luso-espanhola na Conquista de Sergipe, fato que teria ocorrido ao entorno da serra do Pico; e também a base indígena sobre a qual o invasor deitou sua semente de onde surgiria um povo inteligente, resistente e até teimoso, trabalhador e empreendedor, simbolizado no primeiro deles: Simão Dias, o mameluco(filho de branco com índia), também conhecido como Francês. Dessas matapoanes quase todos nós, alguma coisa carregamos.