sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Resquiet in pacem.

Morreu João José de Santana, popularmente Zizu, octogenário que “Morreu atrapalhando o tráfego”, como o disse Chico Buarque de Holanda numa das canções consideradas como das mais inteligentes da Música Popular Brasileira, intitulada Construção. Foi colhido por um carro, um táxi, numa rua qualquer de Itabaiana, numa macabra repetiçãodo que tanto tem acontecido. “Apenas um velhinho, coitado”, que teve a infelicidade de atravessar na frente do carro. Segundo me contou seu genro, o motorista envolvido na colisão chorou como menino ao ver o que havia provocado: uma pancada até leve, porém insuportável e, portanto, fatal para um octogenário.
Seu Zizu era do tipo “caboclo respeitadô”, trabalhador que muito trabalhou na caneta de Adão ou peroba, como preferem outros; no machado, na foice, enfim, deu duro a vida inteira. Tinha horror a causar qualquer dano a terceiros; do tipo que desviava numa calçada para não molestar um cachorro sardento. Religioso, bom pai, bom marido, é natural também ter sido bom filho. Era aquilo que os hindus chamam de “grande alma” ou “espírito velho”, de várias encarnações. Nunca o vi com um só leve sinal de irritação, muito menos raiva ou ódio.
Como homem trabalhador e inquieto, era magrinho e tinha o hábito de caminhar. Muito caminhar. Participativo, não perdia uma manifestação política do “seu” partido, o “partido de Manuel Teles”, cujo chefe atual ele identificava no atual prefeito do município, representado nos vários cartazes de campanha pregados em sua porta. Não perdia uma reunião do sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itabaiana, desde praticamente a sua fundação. Ia todos os dias à Igreja, às vezes duas vezes: uma à Matriz do Bom Parto, seu domicílio religioso; outra à Matriz das matrizes, a velha Matriz de Santo Antonio e Almas da Itabaiana. Era “preciso caminhar milhas e milhas antes de dormir”, como escreveu o grande poeta americano.
Só que Seu Zizu morava em Itabaiana. Não mais na Itabaiana de seus tempos de menino pungando os carros de bois; mas na Itabaiana da arrogância dos novos ricos mal-educados; do desleixo administrativo, da esperteza sobrepujando qualquer naco de inteligência, por natureza, racional e ética. Na Itabaiana onde tudo se resolve na base do “é assim mesmo!” E assim mesmo fica. Na Itabaiana do velho vício de administrações que vivem de apenas preencher boletins para que venha o dinheiro da metrópole, desde os tempos em que a metrópole era Lisboa até os dias de hoje. Até quando era menino, Seu Sizu não sentiu tanto isso. Mas acabou vítima desse modus operandi. Quarta-feira, 21 de outubro do ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2009, eis quando em mais uma das medicinalmente recomendadas caminhadas, em direção à feira, Seu Zizu, como já dito, foi colhido pelo carro em velocidade baixa, mas cuja pancada foi suficiente para jogar seu corpo frágil pelos anos de serviço à sociedade, ao chão, provocando poli traumatismos que o levou à morte.
Eu conheço a região do acidente e, invariavelmente como em toda a cidade, sempre tem um “pit-boy” ou “pit-man” a colocar sua “máquina” “o seu sonho de metal” à mostra em cima das calçadas – conhecida como passeio público, em lugar civilizado; o local, como de resto toda a Itabaiana, é cheio de calçadas irregulares que desestimulam o trânsito de pedestres levando-os a arriscar-se em andar pelo leito da rua, enfim, e hoje, 23 de outubro deste 2009, ao menos hoje, numa esquina no trecho, das mais movimentadas, eis que passo e lá está, já de muito tempo, o “passeio público” tomado por um monte de material de construção, forçando o pedestre a escolher o leito da rua, por sinal asfaltado, portanto de consistência regular. Pior, o material não se restringe apenas à calçada, “passeio público”, mas ocupa boa parte do próprio leito da rua. Não sei se foi essa combinação de fatores que levou Seu Zizu, homem temente a Deus e respeitador das leis e dos costumes a se aventurar pelo leito da rua, expondo-se ao acidente que o acabou colhendo. Sei de uma coisa: jamais ele faltaria com o respeito pisando a ruma de areia de alguém, mesmo que esse alguém estivesse por ele identificado como estando errado. Gente age assim. Bichos travestidos de gente é que agem diferente. Também sei que, só se queima quem mexe com fogo. Seja de propósito; seja empurrado por alguém ou alguma situação.
Seu Zizu agora é estatística. Iguais a outros “velhinhos” que estão morrendo atropelados nas ruas de Itabaiana ou de quedas nas calçadas cheias de buracos e outras irregularidades, que nunca foram passeios públicos. E só. Mais um velhinho que “morreu atrapalhando o tráfego”. No seu velório, não vi; e no cortejo fúnebre não apareceu um só político. Seu Zizu votou até na última eleição no “seu partido”, “o partido de Manuel Teles”, mesmo estando dispensado pela Lei já de algum tempo. Mas só tinha seu voto, e talvez o da sua esposa em situação de locomoção pior que a dele. A única filha, maior e independente não reside em Itabaiana, logo, Seu Zizu não tem aquela família grande, cheias de votos – e peditórios, também.
Estatística. Seu Zizu, tal qual as dezenas que morrem todos os anos por aqui vítimas de criminosas omissões das “altoridades”, agora é estatística.
Seu Zizu era o meu tio por cortesia de quem mais gostei.
Definitivamente, um homem bom.
Descanse em paz, meu tio!