quinta-feira, 18 de abril de 2013

Quando o feitiço é demais.


Ontem, 17 de abril deste 2013 fui convidado a proferir uma rápida palestra para uma turma do primeiro período de Direito da UNIT, núcleo de Itabaiana. Assunto? Política e administração municipais, centrado no período de 1980 a 1988, anos coincidentes com o início do declínio da liderança de Francisco Teles de Mendonça, da sua perda de controle da Prefeitura Municipal de Itabaiana e consequente início da liderança de Luciano Bispo de Lima. Logo depois da minha fala, nos costumeiros bastidores um dos alunos me pôs contra a parede. O assunto fugiu ao período dissertado, mas é ainda de longe o assunto de ordem política mais popular, digamos, relativamente à história recente de Itabaiana. A pergunta: “Quem matou Euclides Paes Mendonça?” Inicialmente busquei contextualizar, porém, na primeira oportunidade ele me obstou com a afirmação: “Como todos, o senhor não respondeu à minha pergunta... quem matou Euclides?” Fiquei surpreso e ao mesmo tempo maravilhado. Em primeiro lugar, sua determinação e perspicácia promete um grande advogado; segundo porque ele me pegou, de certa forma, fazendo o que ele está farto de ouvir, que todos estamos fartos de ouvir, mas que não temos a coragem devida de romper com essa cultura, a da dissimulação, do desconversar, varrer pra baixo do tapete, tirar por menos ou simplesmente mudar de assunto. Não era essa a minha intenção; tampouco a conversa parou aí; mas que de certa forma e em princípio eu me comportei dentro do padrão da tragédia colonial brasileira e que ainda hoje resiste e persiste, isso foi.
Afonso de Taunay, em sua obra de coletânea de artigos coloniais intitulada Na Bahia Colonial, de 1610 a 1764 [Revista do IHGB, Tomo 90, vol.144, 1921] nos traz vários momentos impressionantes sobre a nossa formação. Numa das passagens ele fala de nossos ancestrais judeus, os cristãos-novos: “"Davam-se na Bahia, diariamente, muita conversões à fé cristã, mas, no seu entender, estes neófitos valiam muito menos do que os das Índias Orientais, 'ficando sempre assás levianos e brutais'. Numerosos judeus ali existentes, fugidos à Inquisição, tremiam de medo que se transplantasse à América a instituição peninsular a que fugiam." De fato, aqui trata-se de um estudo sobre as observações do francês Pyrard de Laval que andou pelo Brasil em 1610. Embrutecidos. Em 1610 já se iam quase um século e meio de perseguições, as mais bárbaras possíveis. As mais amenas eram algum tipo de acusação como justificativa pra tomar-lhes os bens; mas tinham também a escravidão, o desterro, a obrigatoriedade de se tornarem cristãos para em seguida serem acusado de cripto-judaísmo e, naturalmente vir a perda de todos os bens, da família e da própria vida numa fogueira “purificadora”. Bichos. Eram proibidos de ler porque a leitura era privilégio de autoridades, de profissionais licenciados... e do clero. Como resultado, um país fundado inicialmente pela raça mais culta do período imediatamente anterior logo se converteu num país de embrutecidos analfabetos. Mentir, dissimular, fingir, calar ao menor sinal de risco, preparar a cilada, trair, levar o individualismo ao extremo, ser indiferente, desesperançados; enfim, sobreviver, ganhar o sustento e até enriquecer, pouco importa se do próprio suor ou escravizando outros miseráveis como índios e africanos. Contribuíram em quase sua totalidade a “purificadora” ordem fundado por Ignácio de Loyola, a Companhia de Jesus ou simplesmente jesuítas. Eram os fiscais, conversores, os acusadores, os doutrinadores, logo, difamadores; e os maiores beneficiados como ocorreu na montagem da fortuna da ordem, por exemplo, em Sergipe. Quebraram por completo perto de dois mil anos de uma cultura em parcela considerável de um povo, e em seu lugar plantaram a vilania e até o cretinismo. Com o tempo aprendemos a retomar o gosto pelas coisas. Mas certos vícios aprendidos durante os momentos negros da sobrevivência, permaneceram. João Grilo, Cancão, Pedro Malazartes, Troncoso e tantos outros personagens criados e calcados na malandragem, na desfaçatez, mentira, safadeza... tudo pela sobrevivência em um campo do guerra, permaneceram. Mesmo nos dias atuais, falar a verdade diretamente, responder claramente a um questionamento depende em muito de quem está do outro lado e o que pergunta. Quase nada é respondido em definitivo.
Numa entrevista nos idos de fins de 1992, quando o mundo político brasileiro desabava sobre a cabeça do então presidente da República, Fernando Collor de Melo, o então senador paraibano Humberto Lucena, ao dar uma entrevista ao jornalista Heródoto Barbeiro, então na TV Cultura de São Paulo, perguntado por este qual tinha sido seu mais árduo trabalho de investigação a serviço do Congresso Nacional, Lucena citou o processo de apuração dos assassinatos do então deputado federal Euclides Paes Mendonça e seu filho, então deputado estadual Antonio Oliveira Mendonça em 08 de agosto de 1963 em frente da Prefeitura Municipal de Itabaiana, Estado de Sergipe: “Pareceu que nem a viúva conhecia os mortos”, afirmou ele. E assim foi. Ninguém viu nada; todos ouviram dizer que alguém viu. Ninguém ouviu nada especificamente; todos ouviram "boatos". E o assassinato de um dos maiores líderes da rasteira política sergipana ficou sem resposta condizente. Logo, à pergunta do jovem estudante de direito, respondo aqui como o Chicó, personagem criado pelo escritor Ariano Suassuna e inspirado no sobrevivente cristão-novo descrito no segundo parágrafo destas linhas: “Não sei! Só sei que foi assim”.
Meu velho pai, que se vivo estivesse teria completado 99 anos no último dia 27 de março costumava filosofar pra mim que, “quando o feitiço é demais, vira bicho e come o dono”. Claro, meu pai, assim como eu, e acho que todos os que lerem este artigo era um herdeiro legítimo dos envolvidos nesta tragédia. A sanha destruidora do caráter cristão-novo nos levou ao padrão João Grilo. E continuamos sem responder as perguntas. A dissimular; a evitar o confronto de ideias; a dizer a verdade, mesmo que de forma sofisticada. A acumular dúvidas, dissensos e problemas que de vez em quando explodem estraçalhando a todos.
Em tempo: a primeira grande leva em 1590-1610 de colonizadores sergipanos e itabaianenses em particular foram os mesmo judeus convertidos descritos por Laval.