segunda-feira, 21 de julho de 2008

Laissez-faire.

Sábado, 19, por volta das nove da manhã saio para passeio matinal, e cruzo com a tradicional “feira das trocas”. O que menos se faz ali são trocas no sentido do primitivo escambo. Já de há muito. A tradição da desorganização do espaço e seu evento bem como o nome permanecem desde que apareceu, talvez ainda no século XIX. Primeiro tendo animais como produtos de escambo; e atualmente toda a sorte de produtos, inclusive roubados. De vez em quando a polícia encosta com forma de prevenir ou de surpreender, mesmo, os espertinhos que surrupiam objetos de terceiros e que, vez por outra ainda se arriscam a ir até ali.
Mas o que me chama a atenção na feira das trocas é a criatividade, mesma que eivada de ilegalidades. Quando o CD apareceu, logo, logo ele estava na feira das trocas. Depois veio o DVD, e ei-lo lá. A criatividade é tamanha que não tem mercado moderno no mundo mais competitivo. Agora já vendem DVD em envelopes. Sim envelopes que repetem as capas em estojos mais bem trabalhados dos originais. Isso barateia ainda mais o produto. E de nada adiantam as batidas da polícia. O “rapa”, como se diz na 25 de Março, em São Paulo, passa, e eis que já está tudo de volta novamente. É, definitivamente, um problema social, esse da pirataria em cima da indústria cultural. Engloba ele, problemas seculares mal resolvidos que vão desde à pobreza crônica à falta de vontade dos administradores.
Bem, mas sigo adiante. E aí encontro uma das pontas dessa inversão de valores já aculturados. Trata-se de um empresário do ramo da dita indústria cultural e que há tempos atrás bradava pra mim em forma de desabafo, documento à mão, a prova da suposta falta de vontade de uma autoridade em resolver esse problema; o da pirataria. O dito documento era uma determinação, segundo ele, do Ministério Público para que a dita autoridade tomasse as providências no sentido de coibir a tal pirataria, o que nunca, jamais foi feito. Lembro-me que na época eu que me apresentou tal papel tive pra abrir a boca e tirar sua fantasia com um documento sem valor normativo algum, esclarecendo-lhe que aquilo ali só teria validade se fosse o Juiz quem mandasse. Mas fiquei calado diante de tanta esperança e da quase inaceitabilidade da verdade por parte dele.
A pirataria, especialmente de produtos culturais é um problema mundial que não será resolvido com os instrumentos que se tem hoje em mãos. A própria indústria, supostamente a mais prejudicada faz jogo duplo, condenando publicamente, criminalizando o ato, até; enquanto não mexe um dedo para dentro da ferida que poderia de fato resolver o problema. Aí vem o empurrismo. O papel que meu amigo apresentou-me tempos atrás onde o Ministério público “determinava” que a administração municipal resolvesse o problema da pirataria é o último elo da grande cadeia de mentiras que cerca esse legalismo de vitrine. As convenções internacionais criaram leis rigidíssimas, todavia encheram de gargalos premeditados para que fossem facilitadas as transações nebulosas das próprias empresas interessadas em coibir a pirataria dos outros. No caso brasileiro o governo central remeteu tais atribuições aos municípios como forma de “sair da reta”. Inicialmente a idéia era excelente: uma máquina grande demais tem problemas enormes no gerenciamento; entretanto, o que ocorreu de fato foi o famoso “toma que o filho é teu”. Aí cai no colo dos administradores municipais onde, a maioria não tem recursos financeiros; se os têm, não tem a menor vontade política de mexer em vespeiro; se por acaso tiver a tal vontade política, faltam profissionais capacitados para tal.
Enquanto isso cai vertiginosamente a qualidade musical e dramatúrgica no mundo todo. O bilionário mundo de Hollywood está por um fio. A Sony saiu engolindo tudo que encontrou pelo caminho em matéria de áudio e vídeo. Ao invés de se adaptar aos novos tempos – e novos preços competitivos com os piratas – resolveu criar um monopólio e manter os aparentes lucros. Vai quebrar. E isso é muito mal. Não apenas uma empresa da indústria cultural quebrar; mas a própria indústria cultural. Bem ou mal foi ela quem financiou a enorme qualificação do entretenimento que hoje temos em relação aos fins do século XIX. Quanto à nossa “feira das trocas”, se as autoridades reagirem, a criatividade cuidará para que tudo se compense de outra forma. Porta a porta, por exemplo. Aí, fala-se no blue-ray, a nova tecnologia (que já faz mais de dez anos na gaveta). Porém, os “guerrilheiros nas alcovas (já) preparam suas mortalhas”, como diz o poeta. Ou seja, bits são de fato operações matemáticas; e a matemática não é privilégio apenas de uns poucos iluminados.
É o liberalismo.